quinta-feira, 2 de julho de 2015

Lapsos...

Eu tinha em mente escrever uma palavra, mas saiu outra. Foi ou não foi um lapso?

Há lapsos de fala e de escrita. Neste caso, supondo que foi um lapso, tratar-se-ia de um lapso de escrita. Mas acontece que tal não se deveu a uma qualquer divisão ou conflito subjetivo, como sucede na maior parte dos lapsos, mas tão só ao facto de eu estar a escrever num desses aparelhos, cada vez mais comuns, dotados de «escrita inteligente». Eu escrevi algo, mas a máquina considerou - com todas as ressalvas de que o termo se reveste quando aplicado a uma máquina - que a palavra mais ajustada era outra. Consequência: aquilo que eu disse não era efetivamente aquilo que eu queria dizer. Era um erro. Poderia custar-me caro. Provocar um lamentável mal-entendido. Mas não é isso também o que acontece, pensando melhor, na comunicação habitual entre os humanos? Além disso, numa análise, por exemplo, não importa tanto o que o sujeito «quis dizer» (sempre da ordem da consciência, da imagem que ele se faz de si mesmo ou que quer dar a ver, deste ou daquele significado já estabelecido, dominado, manipulado...), mas antes do que é dito, do que cai, apesar de. É aí, onde a palavra escorrega, que o sujeito advém. O sujeito dividido: entre o que diz e o que queria dizer.

Lacan, numa certa época, estabeleceu uma relação entre a ordem simbólica e a máquina. Independentemente do que o sujeito quer ou não quer dizer, a máquina funciona sozinha, de modo autónomo. Porém,  quanto mais «inteligente» se torna a máquina, como tem vindo a acontecer de forma acelerada nos últimos anos, mais ajustável, adaptável - a ponto de incorporar no seu «tesouro» os significantes usados por este ou aquele sujeito - mais ela se parece com o inconsciente humano: não um inconsciente «coletivo», igual para todos, ou uma ordem linguisticamente abstrata, mas antes tão próxima quanto possamos imaginar daquilo a que Lacan chamava «lalangue», isto é, o modo particular, não universalizável, de cada sujeito se haver com a língua ou as línguas que lhe couberam em sorte e que o marcaram no corpo e na mente desde muito cedo. De tal modo que poderíamos afirmar, pensando outra vez na máquina, que se as características e possibilidades inerentes a todos os aparelhos de um determinado modelo são à partida idênticas, ao fim de um certo tempo cada um deles já «fala» uma língua diferente. Até no desempenho, no modo como avariam ou nas pequenas «manias» de cada aparelho se reflete (deliro, com certeza, mas por vezes é mesmo assim) a idiossincrasia, a neurose de cada proprietário.Talvez o problema, no fim de contas, não seja tanto que as máquinas - como costuma imaginar uma certa ficção científica - evoluam de tal modo que queiram vingar-se ou dominar os seres humanos, mas antes que, ao evoluir, acabem por ficar demasiado parecidas connosco. A tal ponto que, em vez de nos curarem das nossas pequenas neuroses, fiquem contagiadas por elas. Humanas, demasiado humanas.

Pois bem, não era exatamente isto que eu tinha em mente quando comecei a escrever, mas aconteceu: está dito. E é preciso aceitar que a palavra nos escapa, que nos trama, apesar de. Tal como reserva, por vezes, boas surpresas. Mesmo quando, de forma inteligentemente estúpida - ou estupidamente inteligente - a máquina corrige esta ou aquela palavra que tanto nos esforçamos por escrever direito. Se pensarmos bem, muitas vezes essa palavra entortada pela máquina, para bem ou mal dos nossos pecados, é também uma das nossas.

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