quarta-feira, 5 de março de 2014

Num pequeno livro de aforismos e outros escritos circunstanciais (Considerações sobre o Pecado, o Sofrimento, a Esperança e o Verdadeiro Caminho, Lisboa, Hiena, 1994), Kafka escreveu o seguinte:

«Todos os erros humanos são impaciência, uma interrupção prematura do metódico, uma aparente limitação da coisa aparente.»

"Existem dois pecados humanos capitais, dos quais todos os outros derivam: a impaciência e o desleixo. Por causa da impaciência os homens foram expulsos do paraíso, por causa do desleixo não voltam para trás. Mas talvez só exista um pecado capital: a impaciência. Por causa da impaciência foram expulsos, por causa dela não voltam para trás.»

Como li bastante Kafka ao pé da letra, reconheço que fui tentado pelo pecado...da impaciência. A saber: acrescentei uma letra à tradução deste aforismo, o que dá no seguinte: impa-i-ciência.

Quer isto dizer o quê? Que é o pai que dá ciência (que permite compreender o seu caso) ou, pelo contrário, que a impaciência do pai (a quem Kafka acusa de todos os males na carta que lhe é dirigida) torna o filho impaciente (de tal modo que tudo, inclusivamente a obra, parece tornar-se vã e condenada à destruição, de acordo com o seu próprio testamento deixado ao amigo Max Brod)?

Ou tudo isso é ainda impaciência da nossa parte, da parte do leitor, que cai facilmente no perigo, ou seja, no pecado - para usar o termo de Kafka - da compreensão apressada, como diz Lacan, algures, no Seminário O Desejo e a sua Interpretação?

Foi contra esta impaciência que procuramos lutar em duas sessões do Seminário do Centro de Estudos de Psicanálise (ACF-CEP) no dia 12 e 19 de fevereiro, 2014, relendo em particular A Carta ao Pai de Kafka. É só clicar!


terça-feira, 4 de março de 2014

Amanhã é quarta-feira de cinzas.
A cinza é o que resta de um corpo
quando tudo arde.
Mas não é essa a pergunta.
A pergunta é esta:
Onde poderá encontrar-se a palavra? Onde é que a palavra
ressoa? Não aqui, não há bastante silêncio.

Ou talvez numa outra língua
menos sentimental:
Where shall the word be found, where will the word
Resound? Not here, there is not enough silence.

Assim perguntou T.S.Eliot
 em Quarta-feira de cinzas,
 Ash-wednesday,
no dia...

Pois que o dia
seja nosso
já que nós
não o somos.

Assim
seja.



segunda-feira, 3 de março de 2014

É politicamente incorreto, nesta época, dizer que não se gosta do Carnaval. Ainda assim, eu afirmo: não gosto do Carnaval! Mesmo se também usei - e uso - máscaras quando convém, pois um lado da vida é essencialmente carnavalesco, não morro de amores pelo Carnaval. Por isso, ou talvez simplesmente porque ventava e chovia, acabei por ir ao cinema.

Não havia muita gente, umas dez pessoas, talvez. Preferem o Carnaval, concluí. Ou talvez simplesmente não gostem de sair de casa quando chove ou faz vento. Ou outra coisa qualquer: talvez não gostem do filme ou da sala onde é exibido.Tanto melhor: ao contrário daqueles que têm horror ao vazio, a mim reconforta-me. O vazio, como sabiam os chineses antigos, bem antes do capitalismo entrar em cena, é o que faz andar o carro ou que torna a casa habitável.

Havia pouca gente, portanto, e um filme para ver: "Her", de Spike Jonze, com banda sonora de Arcade Fire. Tenho alguma dificuldade, confesso, em pronunciar este apelido (Jon-ze), mas aqui, ao pé da letra, não se nota. É o que acontece, por exemplo, quando vou ao Brasil: de repente, a minha pronúncia parece-me estranha, como se a voz arranhasse a fala. A pronúncia mostra que a voz se incrusta na letra, no significante, como carbonato de cobre que se forma nas estátuas e medalhas de bronze, cobrindo-as de sujeira que é preciso escovar, polir...

O filme tinha como subtítulo: "Uma história de amor de Spike Jonze". O amor promete sempre fazer Um de Dois. Pensem no mito de Aristófanes, o velho senhor que já colocava Sócrates nas nuvens, mesmo antes de existir "a nuvem", e que fala sobre o amor no Banquete de Platão como se este fosse a tentativa de juntar as metades que se haviam separado.Porém, o filme inverte o cenário: já não se trata de fazer Um - pois Um é o que existe, o ponto de partida: cada um sozinho, caminhando ao lado de outros, também sozinhos. Por isso o filme visa outra coisa: num mundo onde os relacionamentos "reais" estão todos a soçobrar (o protagonista do filme, Theodore (Joaquin Phoenix), acaba de separar-se de Catherine, outros se separam/divorciam entretanto), como faz cada um para lidar com a não existência da relação entre os sexos? Será que a tecnologia pode dar uma ajuda? Aliás, parece que Jonze teve a ideia inicial para o filme em 2003, precisamente quando chegou ao fim a sua relação com Sofia Coppola, relação esta que durou quatro anos, de 1999 a 2003, salvo erro.

A tecnologia parece dar uma ajuda nas relações. E por que não?  Sobretudo quando se trata de um novo e ultra-inteligente sistema operativo (OS) que a si mesmo decide dar-se o nome de Samantha (voz de Scarlett Johansonn). Theodore, que se dedica profissionalmente a escrever cartas (letters) para clientes que querem expressar o seu amor por alguém, acaba por apaixonar-se progressivamente por esta voz (virtual) que parece estar à altura, na perfeição, de tudo aquilo (tanto a gestão do quotidiano, como os sentimentos) onde os humanos de carne e osso tendem a falhar constantemente. E a "relação" entre o homem e a máquina torna-se cada vez mais séria, mais íntima, mais convincente, de tal modo que a certa altura parece ser normal (e o espectador nem sequer estranha muito, mesmo que esboce um sorriso) que Theodor comece a apresentar o Sistema Operativo como a sua namorada, como se isso fosse a coisa mais comum do mundo. E por que não?

A certa altura, Theodore tem o seguinte desabafo, comentando as cartas (letters) que escrevia na empresa onde trabalhava (cartas estas, aliás, pelo menos algumas, que o autor acabará por receber mais tarde sob a forma de livro, mostrando, como diria Lacan, que uma carta chega sempre ao seu destino): "São apenas cartas (letters)". Aqui, a ambiguidade entre cartas e letras (letters) parece-me essencial, embora tal ambiguidade seja impossível de manter em português. Na verdade, aquilo que está em causa na "relação" entre o homem (Theodore) e o Sistema Operativo (Samantha) é uma espécie de inquietação, de temor e tremor permamentes de que a coisa não passe de letras (letters), um relacionamento entre um homem e um conjunto de letras, de fórmulas matemáticas... E o próprio Sistema Operativo, que evolui a cada momento, sonha a certa altura com um corpo próprio. Não se trata já, aqui, de o ser humano sonhar com a máquina, uma máquina tão perfeita que acaba por potenciar evolutivamente a sua experiência, como acontece de resto com o próprio ser humano, mas de uma máquina tão perfeita que acaba por sonhar, mais do que isso, por exprimir o desejo de ter um corpo próprio. E quando as máquinas se põem a desejar, o caso já é suficientemente sério.

Na impossibilidade de um corpo próprio, a máquina arranja uma solução ad hoc, introduzindo na relação uma terceira pessoa, uma mulher de carne e osso, na verdade a única mulher efetivamente presente, que, por meio de alguns truques de cariz tecnológico, acaba por dar suporte físico à entidade e voz incorpóreas de Samantha, o Sistema Operativo. E tudo parece dar certo, finalmente: um sistema perfeito e, ainda por cima, com corpo. Só que algo falha no momento em que Theodode começa a beijar Samantha, melhor dizendo, a mulher que na realidade a encarna: os lábios desta tremem ligeiramente, descontroladamente. E isso faz quebrar o encanto. Aquilo que tão bem parecia funcionar quando "desincarnado", pura voz no ciberespaço, acaba por falhar no momento em que os corpos estão sujeitos ao atrito, à contingência, ao temor e tremor que os agita no contacto com outros corpos. A partir daí, a "relação", supostamente perfeita, entre um homem e o seu Sistema Operativo, acaba por assemelhar-se perigosamente com a realidade; sobretudo quando Theodore sabe que "Ela" (Her) não é só dele, mas de mais seiscentos e tal como ele. Como pode "ela" amar tantos quando ele pensava ser o único por quem ela nutria "sentimentos" tão exclusivos, intensos e apaixonados?

Uma leitura do filme poderia ser então a seguinte: para suprir o que não funciona na realidade, cada vez mais a tecnociência nos vai proporcionar instrumentos, sistemas ou aparelhos sofisticados que prometem cumprir (satisfazer-nos) onde os outros (o Outro) falha inevitavelmente. E se isso, no limite, acaba por falhar igualmente, sobretudo quando pretende imitar a realidade, é porque esta é afinal mais concreta, mais verdadeira. Mesmo se as relações podem não dar certo, elas implicam um elo entre um e outro (sexo) e não apenas um fio umbilical, tecnológico, que reconforta cada um na solidão autoerótica (ou mesmo autista) do seu próprio gozo.

Porém, numa segunda leitura, aquilo que está em causa é ainda mais radical: é que a própria "relação" entre dois corpos falantes - estranhos animais à face da terra! - só é possível quando há qualquer coisa, um não sei quê (da ordem de uma voz, por exemplo, um brilhozinho nos olhos, uma sombra,  uma luz, uma mecha de cabelo, o tremer de um lábio, uma covinha no rosto, um trejeito no sobrolho, a forma de um pé, ou seja lá o que for, por mais ou menos perverso que se afigure) que suporta, que faz ex-sistir durante um tempo, mais ou menos longo, mas sempre de forma contingente, uma "relação" para a qual não há fórmula escrita, não há letra (letter) ou sistema operativo de letras (letters) que valha. Deste ponto de vista, a tecnologia apenas vem dar um suporte mais sofisticado a algo que sempre existe na realidade: para abordar o Outro sexo, é preciso alguma coisa retirada do cenário fantasmático de cada um. A tecnologia apenas vem tornar este cenário mais concreto, materializando (ou virtualizando) um tal cenário. É isto o que filme também nos  nos dá a ver: um cenário onde a fantasia de cada um se pode materializar. Não é todo o cinema, aliás, como o Sistema Operativo chamado Samantha, nome da Mulher que não existe na realidade, tendo efeitos sobre todos os espectadores, em geral, mas como se cada um fosse exclusivamente amado e desejado por ela?

 Deste ponto de vista, a realidade material ou virtual equivalem-se: ambas servem de palco às nossas fantasias. Só que - e é para aí, como um ponto de fuga, que aponta o filme de Spike Jonze, em meu entender - a realidade, seja ela material ou virtual, acaba por abrir-se, como uma janela, para um real impossível. Quando os Sistemas Operativos começam a ficar demasiado parecidos com as coisas do dia a dia, eles começam a falhar. E não a falhar por avaria ou defeito de  fabrico, isto é, porque sejam imperfeitos, mas antes porque são tão perfeitos que até já são capazes de...FALHAR! Não poder falhar, ao invés de ser o auge da perfeição, é um defeito. Se Deus não puder falhar, é apenas uma máquina sofisticada.

Mesmo se o filme de Spike Jonze nem sempre é fiel à sua própria lógica, apontando, no fim, para um (pseudo) hegelianismo de Samantha, como se o Sistema Operativo que tem este nome fosse uma espécie de espíritio absoluto que pretende continuar a evoluir através e para além de toda a catástrofe individual, procurando sentir cada vez mais e mais depressa, sentir tudo de todas as maneiras, como diria o poeta, o que é certo é que aquilo que resta, que se impõe verdadeiramente, contra os automatismos de toda e qualquer espécie, é a imprevisibilidade dos encontros. E para isto, não há solução final. Com mais ou menos tecnologia, o lábio continuará a tremer quando menos esperarmos. Graças a Deus!