quinta-feira, 24 de abril de 2014

Cair como sopa no mel

No contexto de um Seminário da Antena do Campo Freudiano (ACF - Portugal), agora num novo e belíssimo espaço, dei por mim a usar a expressão: «cair como sopa no mel». Para minha surpresa, isso gerou indignação geral. Não pode ser, afirmaram em coro, pois a sopa e o mel não se dão bem!

De facto, parece estranho, paradoxal. Lembrei-me até de algumas leituras da minha adolescência, como a «Mafalda toda». A nossa Mafaldinha, acusando o capitalismo de ter inventado a sopa - e este é apenas um dos seus malefícios - recusava-se a comê-la, fazendo birra, ou então argumentando, o que é no fundo uma birra mais sofisticada, mais filosófica. Para já não falar na sopa no mel: o que diria a pobre Mafalda, que cara faria? Portanto, não pode ser: nem sopa, nem mel. E muito menos mel a cair na sopa! Indignai-vos! Não pode ser!

E, contudo, pode. Mais do que pode: é! O que não pode ser...É!

Como chamar a isso que não pode ser e, não obstante, é? Milagre (do significante) ou real?

Neste caso, o bem dizer d'alíngua (como escrevia Lacan, inventando o que ainda não era) torna possível...o IMPOSSÍVEL DE DIZER.

Para mais dúvidas, há o Ciberdúvidas! Está lá (quase) tudo bem explicacado: cair como sopa no mel diz-se daquilo que acontece da forma mais conveniente e no momento mais propício; que vem a propósito, que acontece como se deseja, que calha bem.

Vem mesmo a calhar!

domingo, 13 de abril de 2014

Jacques-Alain Miller, dois textos e um segredo

No recente Colóquio sobre Slavoj Zizek - «Viver Perigosamente» (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, dias 10 e 11 de abril), José Martinho, psicanalista da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e da New Lacanian School (NLS), além de fundador em Portugal da Antena do Campo Freudiano (ACF), relembrou a certa altura que Zizek esteve bem orientado desde o princípio, uma vez que conviveu com os melhores alunos de Lacan, em particular com Jacques-Alain Miller. É o próprio Slavoj Zizek que reconhece esta dívida, aqui e além, nos seus livros e entrevistas, mesmo se nos últimos anos se tem vindo a acentuar uma rotura entre ambos.Não é disto, porém, que eu gostaria de falar; em vez disso, lanço uma questão: quem é Jacques-Alain Miller?

Muita coisa se poderia escrever como resposta. Antes de mais, que foi o genro e legatário da obra de Lacan. É ele que tem vindo a estabelecer, desde há vários anos, os seus escritos e seminários, além de animar um seminário de Orientação Lacaniana que tem sido uma autêntica forja e, sobretudo, uma bússula para todos aqueles que procuram orientar-se no ensino de Lacan, tanto na sua vertente pura como aplicada, quer dentro como fora de muros. Poderia dizer isto e muito mais. A importância do trabalho de Jacques-Alain Miller - movido por um desejo a toda a prova - tem vindo a crescer de dia para dia. Mas não é dessa forma geral, reconhecida por todos, mesmo por aqueles que discordam muitas vezes das suas posições ou decisões, que eu gostaria de falar. Lanço antes a questão: quem é, para mim, Jacques-Alain Miller?

Como muitas vezes aconteceu na minha vida e na mais diversas ocasiões - daí o título do blogue - foi ao pé da letra que eu primeiro conheci Jacques-Alain Miller. A começar por um texto, digamos, introdutório, que se chamava Recorrido de Lacan (em espanhol) e onde se reuniam diversas conferências realizadas por J.-A. Miller em Caracas (1979), Bruxelas (1981) e Buenos Aires (1981). E desde logo ficou absolutamente claro, para mim, que ser lacaniano era perfeitamente compatível com um estilo - nesse aspeto bem diferente do estilo gongórico do próprio Lacan - que não primava pelo hermetismo, mas antes pela clareza. Jacques-Alain Miller tem a capacidade única de ser ao mesmo tempo profundo e leve, simples e rigoroso, preciso e denso. O seu estilo, cristalino, é a melhor forma de prosseguir aquilo que Lacan chamava, algures, no Seminário X, um ideal de simplicidade, apanágio de todo o verdadeiro ensino. Mas não é disso que eu gostaria de falar, nem das dezenas de textos que li posteriormente ou das conferências memoráveis a que pude assistir em Paris; uma delas lendária porque me fez chegar atrasado ao avião, perdê-lo, e ter de pagar mais na viagem de volta do que teria pago por toda a viagem de ida e volta.

Não, não é isso. Aquilo que eu gostaria, mais do que falar de Jacques-Alain Miller, é de dar dois exemplos. Dois textos recentes que servem, como nehum outro, de fio de Ariana para entrar sem receio de vir a perder-se num labirinto chamado ensino de Jacques Lacan, em particular no Seminário VI, O Desejo e a sua Interpretação. Com a garantia de que há lá um segredo. Qual?

Aqui deixo as traduções que fiz (naturalmente discutíveis) dos textos em causa.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Distância cínica

Nas suas análises da ideologia contemporânea, o filósofo esloveno Slavoj Zizek usa por vezes a expressão «distância cínica». O que é a distância cínica? Sucintamente eu diria: é uma certa atitude do sujeito (da enunciação) para com um enunciado, geralmente produzido por um Outro, mas não necessariamente. Ou seja: é a «distância» que permite ao sujeito manter-se numa zona tranquila,  confortável, ou, como se diz também, na sua zona de conforto, perante um Outro invasivo, incómodo ou, simplesmente, chato

Sem entrar em grandes e «chatas" elucubrações sobre o assunto, perguntei-me se não haveria no linguajar quotidiano um enunciado que ilustrasse bem a distância subjetiva de que falo. E julgo ter encontrado. Ei-lo: Tou nem aí!


(Es)tar nem aí já é toda uma filosofia...da gramática. Aliás, estar ou não estar não é dado a todos os falantes; os franceses ou ingleses, por exemplo, estão condenados a ser ou não ser (être ou n'être pas, to be or not to be). Se Hamlet, por exemplo, fosse uma criação portuguesa, ele teria dito: Estar ou não estar...aí. E tudo seria diferente! Até o filófoso alemão, Martin Heidegger, teve de inventar um «Ser-aí» (Da-Sein) porque não tinha à mão o verbo "Estar". Estar ou não estar aí? O homem é aquele animal que está nem aí.

A lógica tradicional diz-nos que não é possível estar e não estar ao mesmo tempo e sob o mesmo aspeto; portanto, a expressão, tou nem aí desafia a lógica tradicional. Aliás, o que tem a lógica tradicional a dizer-nos sobre um mundo, como o nosso, que é tão estranho e paradoxal? Não se trata apenas de estar ou não estar, pois há uma distância entre ambos que se cava e subverte tudo:nem.

A expressão completa deveria ser: Não estou nem aí. Uma dupla negação que, na verdade, significa: não quero saber nada disso (versão neurótica) ou estou-me nas tintas para isso aí (versão cínica).

Sigmund Freud, escreveu um artigo muito interessante sobre estas questões e a que chamou, em alemão, Die Verneinung: A (de)negação. Foi a sua maneira de falar de um sujeito que se distancia dos seus enunciados. Como no exemplo de alguém que adverte: «Não pense que agora vou dizer algo para ofendê-lo!» Mas por que diabo alguém teria pensado tal coisa a não ser o próprio sujeito que adverte? Um sujeito que afirma e nega ao mesmo tempo, que está e não está aí simultaneamente.

Graças a quê? Àquilo que Lacan desenvolve até à exaustão ao longo do Seminário VI, O Desejo e a sua Interpretação. A saber: a relação do sujeito com o significante. É este, no fim de contas, que cava uma distância irremediável entre si e si mesmo, entre si e as coisas, entre si e os enunciados que profere ou são proferidos. Mas, ainda que isto seja uma razão necessária, será ela suficiente para justificar a «distância cínica» que se instalou entretanto no mundo como um fenómeno viral, como agora se diz?