domingo, 11 de maio de 2014

Um estranho objeto

O que é o objeto lacaniano, o estranho objeto a que Lacan chamou pequeno a?

Lembrei-me de escrevê-lo de um modo negativo: sob a forma do que ele não é. Este objeto não é um objeto comum, da realidade de todos os dias; mesmo quando aparece na  realidade, como na psicose, é mais sob a forma da irrupção de um real, perturbador, nessa realidade, de algo que colapsa ou ameaça colapsar a realidade do sujeito.

Este objeto não é, igualmente, um objeto da necessidade,  algo que poderia saciar a fome ou a sede, por exemplo. Também não é aquilo a que certos filósofos chamaram o correlato do sujeito. Ele não é o objeto do conhecimento, a cara-metade do sujeito.

A bem dizer, ele não é nada disso. Ou, positivamente, ele é: nada em relação a isso. E cheguei a perguntar-me se esta não seria, precisamente, a sua definição: nada. O que poderia talvez ilustrar-se fazendo variar uma frase: comer...nada, como faz a anorética; ceder...nada, como faz o obsessivo, mesmo se ele parece fazer tudo pelo Outro; ver...nada, como Lacan ilustra por meio do quadro «Os embaixadores», no Seminário XI, em que o luxo que seduz o olho do sujeito furta ao seu olhar o ponto de invisibilidade que lhe escapa no fundo do quadro; escutar...nada, como no «Grito», de Munch, tanto mais angustiante, perturbador quanto esse grito é literalmente silencioso.

Portanto, o nada como objeto. O objeto nada. O objeto do desejo é nada...de concreto, nada que possa matar a fome ou a sede. É por isso que, mesmo quando estamos saciados, o desejo ainda tem fome e sede...de outra coisa. Na verdade, nada o sacia. Do ponto de vista do desejo, enquanto desejantes, somos todos insaciáveis. E o capitalismo, a sociedade de hiperconsumo em que vivemos, encarna bem essa lógica. É por isso que às vezes é preciso cortar, reajustar, pois o desejo em si mesmo não tem moderação. É sempre desejo de um outro desejo: um desejo que um outro nos vá dando crédito, nos acredite. Como Lacan chegou a dizer: o desejo é, essencialmente, desejo de nada. Quer dizer: nada o detém a não ser provisoriamente. E a culpa é do significante, dessa palavra que, matando a coisa - como diria Hegel - eterniza o desejo no sujeito.

Só que o objeto, o objeto lacaniano, a que ele chama pequeno a, não é simplesmente o eterno deslize do nada, daquilo que falta. Ele é também um excesso, algo que resiste ao nada, que é sempre mais um pouco, um bocadinho (Lacan chama, inspirando-se em Marx: plus-de-jouir, mais-de-gozar).

Eis o que filho ensinou ao pai naquela tarde quando, em resposta a um: «já chega por hoje!», disse: «ó pai, só mais um bocadinho!».

Só mais um bocadinho de quê? Aquilo que o filho tinha nas mãos dá-nos a resposta: um objeto tecnológico, um tablet, onde jogava um jogo. Estes equipamentos, aparelhos ou dispositivos (gadgets), como dizia Jacques-Alain Miller em 2013, no encerramento do IX Congresso da NLS, são objetos de sublimação, objetos que se acrescentam, o que é exatamente o valor do termo mais-de-gozar.

Portanto, hoje, na era da tecnociência, mais do que buscar no seio ou nas fezes, como Freud nos indicou, a verdade do objeto, é preciso descobri-lo em «todas essas aparelhagens que nos ocupam» (Cf. Jacques-Alain Miller, «The Other without Other», in Hurly-Burly, 10, December 2013, pp. 15-29).  Há algum tempo fiz uma tradução deste texto sob o título: O Outro sem Outro.

Talvez, por isso, a melhor forma hoje de falar do objeto a, seja, afinal, um i. Não foi também o que mostrou o seu inventor?

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Gostar ou não gostar

Costuma dizer-se que uma imagem diz mais do que mil palavras. Mas uma imagem não diz. Uma imagem mostra. É por isso que não basta, que não se basta a si mesma. Uma imagem não faz ponto de...BASTA! Por isso traz outra imagem. E sempre mais outra. Se uma imagem dissesse mais do que mil palavras não eram precisas tantas imagens, bastava uma.

Uma imagem não diz, mostra. É por isso que atrai um dizer. Um dizer que diga o que ela mostra, que a garanta. Pode ser um grau zero, um mínimo dizer, um dizer perto do chão. Um simples: «gosto». Como no facebook: I like.

O facebook é um novo espelho. Uma nova encarnação do estádio do espelho (Lacan). Não no sentido do que passa ou do que ficou lá atrás, mas antes como prova do que não para de não passar. Como uma doença incurável.O facebook é parte da nossa doença incurável. Da nossa debilidade. Do nosso ponto fraco por algo que sempre nos repete: «Tu és isso» (Lacan). Isso, o quê?

Não sabemos. Queremos saber. Postamos imagens, aguardamos «likes».. Como será que o Outro me vê? Será que gosta? Buscamos o olhar do Outro como se ele tivesse a chave daquilo que somos. Mas sobretudo um signo no Outro: um signo de amor. Estamos demasiado perto de nós (e sempre muito longe) para nos vermos bem. Mas ele... Se ele não me «laica», será que (me) gosta?

O problema é que a imagem, em vez de dizer mais do que mil palavras, mostra sempre menos do que gostaríamos de ver. Um impossível de ver. E por vezes mais, sem dúvida. Mais até do que aquilo que suportamos. Que gostaríamos de ver. Daí a importância do «like»: ele veste de amor o impossível, o insuportável. Mas também pode inibir-nos, angustiar-nos, sobretudo quando não vem, quando não chega. Ou chega sob a forma de um «comentário» que não agrada, que não conforta.

Cada imagem nos mortifica um pouco, nos congela. E hoje, além do mais, como diria Benjamin, num mundo de imagens que se repetem indefinidamente, graças a múltilplos dispositivos cuja função é unicamente produzir imagens sem fim, a «aura» esvaneceu, apagou-se. Daí que aguardemos um like, um comentário como quem espera um suplemento de aura. Um pequena graça nesta era desgraçada!

Quase me apetece dizer, como Bartleby: I would prefer not...like!