segunda-feira, 29 de junho de 2015

O lugar é a palavra

Alguém me dizia, ontem, que à pergunta do taxista: viro à direita ou à esquerda?, ficou de repente e durante algum tempo sem saber o que responder. Como distinguir, afinal, a direita da esquerda? E não falo em sentido político, mesmo se por vezes também não é fácil.

Talvez a maior ou menor dificuldade em distinguir a direita da esquerda diga mais sobre o modo como o nosso corpo se dispõe ou relaciona com o espaço ou o lugar, e nós mesmos com o nosso corpo, do que propriamente sobre o espaço ou o lugar em si. Na realidade, não há maneira de distinguir conceptualmente direita e esquerda. A direita e a esquerda não são isto ou aquilo, uma coisa, uma substância, mas o modo como algo se situa relativamente a outra coisa, e sobretudo em relação ao nosso próprio corpo. Precisamos de ter algo como referência, um quadro, para que a direita e a esquerda venham ocupar o seu lugar.

Porém, o lugar está longe de ser algo evidente. Para o filósofo Emmanuel Kant, por exemplo, o lugar pré-existe aos objetos que o ocupam ou podem vir ocupá-lo. O espaço, enquanto conjunto de lugares possíveis, permite assim enquadrar o real, percebê-lo não já como coisas em si, mas como fenómenos, isto é, como algo enquadrado ou enquadrável. Há um elemento subjetivo, digamos, que permite recortar o real segundo um quadro prévio, dado a priori.

Eu não iria por exemplo a Madrid ver uma exposição de Carl Andre, poeta e escultor americano, se não soubesse previamente que tal exposição existia ou qual o lugar onde ela poderia ser vista. Foi esse quadro prévio que me fez dirigir ao lugar, Museu Velasquez, no Parque del Retiro, para ver uma exposição intitulada: «A escultura como lugar», retrospetiva que abrange quarenta e dois anos de trabalho do artista, de 1958 a 2010.

Diferentemente de Kant, porém, trata-se neste caso de anular, de suprimir o mais possível o elemento subjetivo, o quadro prévio, de forma a realçar a própria materialidade do objeto: geométrico, industrial, serial. Vários são os termos para nomear esta arte: minimalismo, land art, arte conceptual, enfim. O que importa captar, a meu ver, é esse esforço para reduzir ao mínimo, se não mesmo suprimir, quer o quadro (substituindo a sua disposição vertical, na parede, por um trabalho feito na horizontal, no chão), quer a subjetividade.

Perguntei-me, ao ver a exposição, melhor dizendo, instalação ou conjunto de instalações em exibição no Museu Velasquez, se não há aqui um certo paradoxo «poético». Na verdade, como não pressupor um sujeito, por exemplo aquele que olha, a quem ela é dada a ver, para que a exposição exista? Poderá uma série de objetos existir em si mesma, na sua materialidade pura, sem um olhar que os resgate?

Porventura mais até do que a arte tradicional, esta parece depender em absoluto de uma subjetivação. Uma vez que nada parece evidente nela, nem ser imediatamente reconhecível, esta carece mais do que qualquer outra, não apenas de um olhar a quem ela se dá a ver, mas igualmente de uma palavra que a situe, que a enquadre, que a localize. É por isso que, ao minimalismo da arte, acrescem comentários infindáveis, intermináveis. Quanto menos evidente é o que se expõe, mais se fala ou discorre sobre isso. A simples materialidade dos objetos é uma ilusão. Desde o impulso inicial (a ideia, a conceção, a decisão de fazer, o como, por parte do artista) até ao ato de nomear («a escultura como lugar») ou olhar e tirar ilações (por parte do espectador), tudo aqui parece dar muito que falar. Como numa psicanálise, um rodeio mais ou menos longo em torno de mínimos objetos, é a palavra que pode situar, isolar e finalmente repor a coisa no seu lugar, no lugar que lhe compete.

Deste modo, longe de ser evidente, o lugar da escultura é aqui, como diria Angelus Silesius, a palavra. O LUGAR É A PALAVRA. Eis o que não se deixa ver facilmente, tanto nesta como em muitas outras obras contemporâneas.

domingo, 28 de junho de 2015

É politicamente (in) correto (não) vestir o uniforme

Não sou americano, embora não desgoste dos americanos. No meu país, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legal há algum anos. Nem sequer provocou grande celeuma, que eu me lembre. Tenho amigos de todas as cores do arco-íris. Os escritores de quem gosto, os atores que aprecio, os músicos que oiço não me tocam por serem desta ou daquela orientação sexual, mas porque escrevem bem, porque incarnam bem os papeis que representam ou porque me enchem a vida de música. A aprovação pela Suprema Corte do Estados Unidos, na última sexta-feira, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, só pode regozijar-me, uma vez que sou um defensor convicto de todas as formas de liberdade e contra todas as formas opressão.

Mas tenho uma birra. Desde muito jovem que não gosto de uniformes, por melhores que sejam as intenções de quem os veste ou no-los quer vestir . Agora é a vez do facebook: somos quase obrigados a vestir o nosso perfil com as cores do arco-íris. Da mesma forma que todos eram «Charlie», aquando dos atentados em França, agora todos vestem arco-íris. Até o diabo veste o seu perfil de arco-íris, supondo que o diabo tenha facebook. E tudo em nome do bem, das boas intenções. Em nome da felicidade. Pois o que importa, como dizem muitos, na justificação dada para vestirem arco-íris, é que todos sejam felizes.

Como sabemos, a felicidade, mesmo se parece cada vez mais um fator político, depende menos das boas intenções, do merecimento, da justiça humana ou divina, da razão pura ou prática, da aprovação desta ou daquela lei...e mais da sorte, ou, como diria Agamben, da «magia». A felicidade é efémera e mágica, quando acontece, e tudo o resto são elucubrações, racionalizações. Basta ler Clarice Lispector, por exemplo, para ter um acesso, ainda que fugaz, a tais clarões de felicidade. Mas nada contra: o desejo de ser feliz é tão antigo como o homem. E se a aprovação de uma lei puder contribuir para isso, por que não? Porém, o que eu gostava de interrogar é outra coisa: à procura de felicidade, o que responde a psicanálise? E não falo de toda e qualquer psicanálise, mas daquela que se diz de orientação lacaniana.

Lacan, no final do Seminário VII, dedicado à Ética da Psicanálise, sem fugir à questão, contrapõe a felicidade ao desejo. Para ele, a pergunta não reside  tanto em saber se somos felizes, mas antes se agimos ou não em conformidade com o desejo que nos habita. De uma forma ou de outra, a felicidade é como um fato pronto a vestir; o desejo, pelo contrário, é o rasgão, a nódoa, o botão que falta ou está a mais por esquecimento, o pequeno defeito. O comum direito à felicidade não diz ainda por que tantos, e cada um em particular, se apega de tal modo a um desejo que não é partilhável, que não veste o mesmo tom, embora possa vestir as mesmas cores, e que muitas vezes prefere, estranhamente, o que o torna singularmente infeliz...

À pergunta: agiste conforme o desejo que te habita, não se dá, para a psicanálise de orientação lacaniana, uma resposta única; ela tem de ser declinada, não só nas sete cores do arco-íris, mas numa infinidade de tons, de gradações. É por isso que a paixão da psicanálise - e bem assim a minha paixão - é a singularidade: aquilo que sempre objeta ao uniforme. Qualquer que seja o estado da arte, qualquer que seja o estado do mundo.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Dentro ou fora do quadro?


Tal era o meu entusiasmo que lhe enchi a cabeça. Quando nos aproximávamos do quadro de Velasquez, Las Meninas, no Museu do Prado, em Madrid, em vez de deixar que fosse o seu próprio olhar a apreender o quadro e tirar dele emoções e conclusões, eu não parava de elucubrar, de divagar. Se todo o mundo delira, como diz Lacan, ao menos que cada um possa delirar à sua maneira. Seja como for, o texto que agora partilho é fruto não só da emoção indescritível que foi para mim estar frente a este quadro de Velasquez, como  de inúmeras conversas que tive oportunidade de manter posteriormente com a psicanalista brasileira Ana Paula Gomes, a quem devo um enorme sangue frio e uma grande paciência para não me mandar simplesmente calar. Por isso, a ela, que tão bem soube re-cortar ou enquadrar alguns dos meus delírios em torno deste e de muitos outros quadros, dedico este texto. Procurei limpá-lo de alguns excessos , embora se trate de um texto deliberadamente impuro, uma vez que diz respeito a uma reflexão inacabada, literalmente em devir. 



Desde que vi pela primeira vez este quadro de Velasquez, numa reprodução, ele não parou mais de obcecar-me. Não porque o tivesse compreendido, mas antes porque alguma coisa nele objetava à compreensão. Ele é, por isso, um dos meus quadros favoritos, um quadro a que retorno sempre.

Há vários anos, mais exatamente em 2000, no âmbito de um Fórum sobre Psicanálise, Sonho e Criatividade, eu proferi uma conferência sobre este mesmo quadro de Velasquez.[1] Acontece que, na altura, eu estava condenado a falar de cor, baseando-me unicamente nas reproduções que conhecia do quadro, uma vez que não tivera ainda oportunidade de o olhar diretamente no museu do Prado onde ele se encontra exposto.

A oportunidade surgiu agora numa recente visita a Madrid. Penso que nunca vi tantos quadros numa única viagem. Mas foi Velasquez quem me deteve por mais tempo, fazendo-me reparar, isto é, parar mais demoradamente e olhar com mais com atenção. Estar ao vivo, frente àquele enorme quadro, não se compara a nenhuma reprodução do mesmo. Há coisas que exigem, que carecem de uma presença. Foi também o caso. Há muito tempo que um quadro não me provocava tamanha emoção!

Posso agora compreender melhor o entusiasmo de um outro pintor, Édouard Manet, quando, em 1865, após ter visitado o Museu do Prado durante vários dias, escreveu ao seu amigo Fantin-Latour, dizendo que Velasquez, por si só, justificava a viagem e que os pintores de todas as escolas que o rodeiam e cuja obra ali está representada pareciam meros aprendizes. Velasquez, afirmava ele, é o pintor dos pintores. O pintor por excelência.

O quadro a que se refere Éduard Manet é universalmente conhecido como As Meninas, embora o título original fosse A família do rei. Ele não só fez correr muita tinta na história da arte como, além disso, houve pintores (caso de Picasso, por exemplo) que não cessaram de o reproduzir ou reinventar, como se quisessem extrair dele um qualquer segredo que teimasse em permanecer velado. Como uma obra-prima eternamente desconhecida, é um quadro que faz falar, escrever, ao mesmo tempo que se mantém num silêncio irredutível, obstinado. Afinal, que segredo ocultará este quadro?

Convém, talvez, começar por descrever o cenário visível e identificar as personagens que o habitam. Vemos, ao centro, num verdadeiro foco de luz, a infanta Margarida, que tinha apenas cinco anos quando o quadro foi pintado, rodeada pelas damas, las meninas, o nome por que é efetivamente conhecido este quadro de Velasquez. À nossa esquerda, tendo numa mão o pincel e na outra a paleta das cores, o pintor dá a impressão de fixar-nos, como se fôssemos nós o tema ou o modelo do que ele está a pintar numa tela de que vemos apenas o reverso: um quadro dentro no quadro. À nossa direita, há uma série de outras personagens: cortesãos, bobos da corte, um cão de olhos aparentemente fechados, parecendo dormir. Mais ao fundo, numa mancha de luz, uma outra personagem, como que indecisa, não sabendo nós se vai entrar ou sair: José Nieto, de seu nome, camarista da rainha. O braço direito de José Nieto guia-nos em direção a algo que parece um quadro, mas que não é na realidade um quadro, antes um espelho onde se refletem duas personagens: o rei Filipe IV e a sua esposa, Mariana.

Eis as personagens e o cenário, mergulhados ambos num extraordinário jogo de luz, sombra e perspetiva, de tal modo que o espectador é como que arrancado do seu lugar e arrebatado para dentro do espaço do quadro. Assim, o que está dentro ou fora, em vez de opor-se, adquire uma estranha continuidade.

Um dos elementos que contribui grandemente para este efeito continuidade é o olhar, o jogo de olhares que Velasquez põe em cena neste quadro. Para onde se dirige o olhar das personagens? Se bem que nem todas olhem na mesma direção, é como se o olhar de grande parte delas, incluindo o do pintor, estivesse focado num mesmo ponto invisível, algures, como diz Lacan na lição de 11 de maio de 1966, uma de várias dedicadas a este quadro de Velasquez.[2] Mas que ponto é esse, afinal? E está dentro ou fora do quadro?

Grande parte da análise que Michel Foucault dedicou a este quadro, no primeiro capítulo de As Palavras e as Coisas, é orientada no sentido de restabelecer a natureza do ponto invisível para onde convergem os olhares.[3] Bem no centro do quadro, ao fundo, há um espelho, onde dois vultos enevoados parecem observar a cena. São eles, como já sabemos, o rei Filipe IV e a sua esposa Mariana. Ora, este reflexo no espelho, relembra Foucault, restitui, como por encanto, o que falta em cada olhar: ao do pintor, o modelo que o seu duplo representado copia no quadro; ao do rei, o seu retrato que está a ser concluído no lado da tela que ele não pode distinguir do lugar em que se encontra; ao do espectador, o centro real da cena, em que ele se colocou como um intruso.

Deste modo, seguindo na esteira de Foucault, o segredo estaria finalmente revelado: não só o direito do quadro de que vemos apenas o reverso desvelaria a sua verdadeira natureza, como também estaria descoberto o ponto – até agora invisível – em direção ao qual parece convergir a maior parte dos olhares. Só que nem mesmo Foucault acredita em tamanha generosidade. Talvez esta generosidade do espelho seja, afinal, simulada; talvez ela oculte tanto ou mais do que manifesta. Porque, como diz Foucault, a função do reflexo especular é a de atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desenrola.[4] Significa isto que, ao mesmo tempo que exibe, que dá a ver, este quadro indica em todas as partes um vazio essencial.[5] Como diz Lacan no seminário XVII, lição de 11 fevereiro 1970, «são sempre as coisas mais visíveis, as que se expõem, que vemos menos».[6]

Isto quer dizer que no mais íntimo do quadro, como diz Lacan num outro lugar, não encontramos uma coisa em si, uma substância, mas um olhar; um olhar que, no dizer de Foucault, ficaria estruturalmente elidido: neste caso, o olhar do pintor, que organizou o quadro, o olhar do rei, para quem ele se desenrola, e, naturalmente, o olhar do espectador que, olhando, não vê. Ou melhor: ele vê sem ver, como na carta roubada de Poe. O quadro dentro do quadro, de que vemos apenas o reverso, tem a função de barrar, de cavar um buraco entre o olho daquele que vê e o olhar que lhe escapa. Ao fundo do espelho, no centro do quadro, o olhar do rei e da rainha, unindo interior e exterior a partir de um ponto invisível, vem, não obstante, organizar todo o espaço do visível. E é dessa maneira que esse visível assenta numa invisibilidade essencial. O quadro virado do avesso, o quadro dentro do quadro, está lá para assinalar uma tal invisibilidade. Ele é a própria revelação do olhar, mas na medida em que este, para que o quadro se constitua como tal, tem de permanecer invisível, excluído.

Mas não é precisamente aqui que reside o paradoxo? Não implicará este quadro, tal como o gesto que o organiza, uma certa obscenidade, na medida em que dá a ver, isto é, põe em cena, algo que deveria normalmente permanecer-lhe exterior e invisível, isto é, fora de cena?[7]

É verdade que Velasquez parece servir-se deste quadro como uma espécie de alavanca, de «escabelo», isto é, de algo que o eleva à dignidade – que ele realmente tinha – de ser o pintor-mor do reino: o pintor dos pintores, como dizia Manet.[8] Dar-se a ver no próprio quadro que pinta parece um gesto indubitavelmente narcísico. Contudo, ao mesmo tempo, o pintor mantém, inerente ao que dá a ver, ao que é possível de ver no quadro, um ponto de invisibilidade. Aquilo que parece ser um mero jogo de reflexos, encaixando finalmente uns nos outros, acaba por girar em torno de um ponto cego, de um impossível de ver. Este quadro de Velasquez é, finalmente, a sublime materialização de um paradoxo, um oximoro vivo, incarnado. Ao trazer para dentro do quadro o que lhe é exterior, Velasquez produz ao mesmo tempo um espaço êxtimo, como diria Lacan. Ou seja: um exterior na sua própria interioridade, um invisível na sua própria visibilidade. Não só um quadro dentro do quadro, mas igualmente um fora dentro do dentro. Uma coisa louca?

***

Seja como for, por meio do seu gesto, da subversão a que submete o quadro, Velasquez faz com que este perca, por assim dizer, a sua inocência, passando a ser um objeto de interrogação: o que é afinal um quadro?

Um quadro é um recorte, uma janela enquadrando algo: um rosto, um corpo, uma paisagem, objetos diversos, enfim. Ele marca um limite: entre o que está dentro e o que está fora, um interior e um exterior. Se o quadro de Velasquez, como vimos, subverte os limites entre o interior e o exterior, por exemplo, ele não anula apesar de tudo a ideia de quadro. Simplesmente, inaugura uma nova era autorreflexiva, digamos assim, em que o artista se interroga sobre as condições de possibilidade de um quadro. É o momento em que o quadro, em vez de ser apenas uma janela aberta para o real ou um espelho refletindo mimeticamente o espetáculo do mundo, se contorce ou volta para si mesmo, apercebendo-se como quadro. Nessa medida, é um gesto bem kantiano avant la lettre: um gesto crítico. Muito mais tarde, Magritte, por exemplo, não fará outra coisa senão repetir, embora em moldes diferentes, este mesmo gesto crítico, em particular na série A condição humana.

Desse ponto de vista, o gesto de Velasquez antecipa muita da arte posterior, inclusivamente a arte abstrata, em que o quadro é submetido às mais diversas interrogações, depurações, deformações, fragmentações, embora permanecendo como referência enquanto quadro. Mesmo quando Malevitch, por exemplo, no seu famoso Quadrado negro, parece querer apagar todo o imaginário por meio de um gesto iconoclasta, ainda assim ele mantém o quadro como referência, se bem que a partir dele se proponha gerar toda uma série de outras figuras. De Velasquez a Malevitch, praticamente tudo mudou, exceto isto: a arte permanece enquadrada, isto é, ligada ao quadro de um modo ou de outro.

Pois bem, houve uma ideia que me assaltou ao ver de novo o quadro de Velasquez, no Museu do Prado, juntamente com um sem número de outros quadros. Após ter percorrido inúmeras salas de três grandes museus de Madrid (Prado, Reina Sofia, Thyssen), saí com esta ideia, porventura louca, na cabeça: o quadro já não é a nossa referência, muito menos exclusiva. As Meninas de Velasquez assinalam um ponto culminante, sem dúvida, em que a pintura se volta para si mesma, interrogando-se como quadro, mas, ao mesmo tempo, iniciam um processo de declínio que só progressivamente evidencia toda a sua amplitude: o quadro vai perdendo o estatuto de referência. Cada vez mais, as artes se realizam fora do quadro, sem referência ao quadro, ou então referindo-se a ele apenas como um «momento» de um processo, de um ato que de modo algum se esgota ou limita a ele.[9]

Um bom exemplo poderia ser o trabalho de Carl Andre, escultor e poeta norte-americano, atualmente com uma exposição no Museu Velasquez, a qual tive igualmente oportunidade de ver, e cujo título é já indicativo daquilo que está em causa: «A escultura como lugar». Trata-se de uma instalação a partir de materiais industrialmente produzidos e alinhados de uma certa maneira, geométrica e em série, no espaço do museu. Neste caso, portanto, o espaço – em particular o chão - substitui o quadro. Não só o espaço que suporta a instalação, mas também o espaço criado por ela, pois dispor um conjunto objetos num espaço é também uma forma de o (re) criar, de produzir espaço, isto é, lugar(es).

Se é verdade que o quadro de Velasquez constitui uma verdadeira revolução copernicana, no sentido kantiano do termo, ao mesmo tempo ele conserva aquilo que poderíamos designar como um centramento, um enquadramento em torno de um centro: ponto de fuga ou de convergência dos olhares. Quando a arte dá um passo mais em direção ao desenquadramento, para servir-me de um termo de Pascal Bonitzer, é a própria ideia de centro que se perde. Como dizia este autor há alguns anos, «o desenquadramento significa que…no centro do quadro, em princípio ocupado na representação clássica por uma presença simbólica (a imagens dos soberanos no espelho das Meninas, por exemplo), não há nada, não se passa nada. O olho habituado (educado?) a centrar imediatamente, a ir ao centro, não encontra nada e reflui para a periferia, onde alguma coisa palpita ainda, prestes a desaparecer.»[10]

É verdade que muita da arte que se faz atualmente continua a ter o quadro como referência. É igualmente verdade que, mesmo ao falar de desenquadramento, a referência ao quadro não se perde, antes se subverte. Mas o que dizer de uma arte onde a instalação, o espaço, a performance, a body art, isto é, as diversas intervenções do corpo e sobre o corpo (pensemos, por exemplo, no caso de ORLAN, a artista francesa que utiliza o seu próprio corpo como objeto de uma permanente metamorfose cirúrgica e estética) ou as mais diversas realizações ou gestos artísticos que não parecem mais enquadráveis, passíveis de integrar ou reduzir a um quadro prévio? De tal modo que poderíamos questionar se não estamos aqui perante um real a céu aberto, sem uma moldura simbólica que o possa enquadrar ou limitar. Não implicará este fenómeno um certo efeito psicotizante na arte contemporânea? E não digo necessariamente psicótico. Uma coisa louca?

Se é verdade, como dizia Lacan em 1965, que o artista sempre precede o psicanalista,[11] um tal estado da arte deve ter algo a dizer, a ensinar à psicanálise. Em particular isto: que saímos da era do pai (representado no quadro de Velasquez não só pelo rei Filipe IV, mas também por um certo modo de centrar o olhar relativamente a um ponto privilegiado). As Meninas constituem um momento culminante na medida em que revelam, em todo o seu esplendor, a fantasia fundamental de uma época (e não só de um artista em particular): o mundo ordenado em torno de um quadro, um quadro em torno de um centro, um centro ocupado por uma realeza que, unindo moebianamente o que está fora e o que está dentro do quadro, institui ou restaura a ordem e a continuidade do todo. Rompida esta ordem paterna, é o real que invade a cena, que devém, agora sim, obsceno, quase pornográfico. A arte já não é apenas – ou sobretudo – exposição de um quadro fantasmático, como acontecia outrora, mas alguma coisa de ordem sintomática. Um sintoma mais do que um fantasma: tanto porque faz sintoma (pensemos no mal-estar que provocam inúmeras manifestações artísticas contemporâneas), como porque serve de sinthoma, como diria Lacan, escrito assim, na medida em que é um modo de lidar, de fazer face, de se haver com um real sem lei (paterna) e sem um enquadramento ou moldura prévios.

Se este novo estado da arte não pode deixar de interessar ao psicanalista é porque também ele, cada vez mais, tem de lidar com sujeitos que, de um modo ou de outro, estão desenquadrados. Que novos recortes são possíveis, sem um quadro prévio ou genérico, universalmente válido, a priori, é uma questão a responder no caso a caso, no um por um. Pois, a cada um o seu sinthoma, isto é, a sua coisa louca, mas também o seu modo de invenção.


[1] Auditório da Escola Superior de Bragança, 1 de Julho de 2000.

[2] LACAN, Jacques (1965-1966), Le Séminaire, Livre XIII, L’objet de la psychanalyse (inédito).

[3] Cf. FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas. Lisboa: Edições 70, 1988, pp. 59-71.

[4] Cf. Ibid., p. 70.

[5] Ibid., p. 71.

[6] Cf. LACAN, Jacques (1969-1970), Le Séminaire, Livre XVII, L’envers de la psychanalyse. Paris. Édition du Seuil, 1991, p. 85.

[7] Cf. Cf. COETZEE, J.M., Elisabeth Costello. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 167.

[8] Sirvo-me aqui do termo «Escabelo» (S.K.beau) que Lacan forjou para dar conta do caso de Joyce e que Jacques-Alain Miller retomou no texto L’inconscient et le corps parlant. Disponível na web: http://www.wapol.org/fr/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=5&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=5 (consultado em 16-06-2015).

[9] Cf., por exemplo, Harold Rosenberg, citado por Denys Riout, Qu’est-ce que l’art moderne, Paris: Gallimard, 2014, p. 94.

[10] BONITZER, Pascal, Décadrages – Pinture et Cinéma. Paris: Éditions de l’étoile (Seuil), p. 84.


[11] LACAN, Jacques, «Homenagem a Marguerite Duras», Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 125.