domingo, 28 de junho de 2015

É politicamente (in) correto (não) vestir o uniforme

Não sou americano, embora não desgoste dos americanos. No meu país, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legal há algum anos. Nem sequer provocou grande celeuma, que eu me lembre. Tenho amigos de todas as cores do arco-íris. Os escritores de quem gosto, os atores que aprecio, os músicos que oiço não me tocam por serem desta ou daquela orientação sexual, mas porque escrevem bem, porque incarnam bem os papeis que representam ou porque me enchem a vida de música. A aprovação pela Suprema Corte do Estados Unidos, na última sexta-feira, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, só pode regozijar-me, uma vez que sou um defensor convicto de todas as formas de liberdade e contra todas as formas opressão.

Mas tenho uma birra. Desde muito jovem que não gosto de uniformes, por melhores que sejam as intenções de quem os veste ou no-los quer vestir . Agora é a vez do facebook: somos quase obrigados a vestir o nosso perfil com as cores do arco-íris. Da mesma forma que todos eram «Charlie», aquando dos atentados em França, agora todos vestem arco-íris. Até o diabo veste o seu perfil de arco-íris, supondo que o diabo tenha facebook. E tudo em nome do bem, das boas intenções. Em nome da felicidade. Pois o que importa, como dizem muitos, na justificação dada para vestirem arco-íris, é que todos sejam felizes.

Como sabemos, a felicidade, mesmo se parece cada vez mais um fator político, depende menos das boas intenções, do merecimento, da justiça humana ou divina, da razão pura ou prática, da aprovação desta ou daquela lei...e mais da sorte, ou, como diria Agamben, da «magia». A felicidade é efémera e mágica, quando acontece, e tudo o resto são elucubrações, racionalizações. Basta ler Clarice Lispector, por exemplo, para ter um acesso, ainda que fugaz, a tais clarões de felicidade. Mas nada contra: o desejo de ser feliz é tão antigo como o homem. E se a aprovação de uma lei puder contribuir para isso, por que não? Porém, o que eu gostava de interrogar é outra coisa: à procura de felicidade, o que responde a psicanálise? E não falo de toda e qualquer psicanálise, mas daquela que se diz de orientação lacaniana.

Lacan, no final do Seminário VII, dedicado à Ética da Psicanálise, sem fugir à questão, contrapõe a felicidade ao desejo. Para ele, a pergunta não reside  tanto em saber se somos felizes, mas antes se agimos ou não em conformidade com o desejo que nos habita. De uma forma ou de outra, a felicidade é como um fato pronto a vestir; o desejo, pelo contrário, é o rasgão, a nódoa, o botão que falta ou está a mais por esquecimento, o pequeno defeito. O comum direito à felicidade não diz ainda por que tantos, e cada um em particular, se apega de tal modo a um desejo que não é partilhável, que não veste o mesmo tom, embora possa vestir as mesmas cores, e que muitas vezes prefere, estranhamente, o que o torna singularmente infeliz...

À pergunta: agiste conforme o desejo que te habita, não se dá, para a psicanálise de orientação lacaniana, uma resposta única; ela tem de ser declinada, não só nas sete cores do arco-íris, mas numa infinidade de tons, de gradações. É por isso que a paixão da psicanálise - e bem assim a minha paixão - é a singularidade: aquilo que sempre objeta ao uniforme. Qualquer que seja o estado da arte, qualquer que seja o estado do mundo.

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