domingo, 12 de abril de 2015

Uma subtração de peso...

Mais até do que a pura ficção, eu gosto do ensaio. Gosto, por exemplo, quando alguém que passou a vida a escrever ficção acaba a perguntar-se: o que é isto que eu tenho andado a fazer? Em termos lacanianos, diria: o sujeito da enunciação retoma o conjunto dos seus enunciados sob a forma de uma pergunta: o que é isto? Eu não cessei de fazer isto, é certo, mas como dizê-lo bem, de forma ajustada?

É esta também a questão de Italo Calvino na primeira de seis conferências que teriam lugar na Universidade de Harvard (1985-1986), não fosse a morte surpreendê-lo entretanto. Cinco dessas conferências acabaram por ser organizadas em livro sob o título: «Seis propostas para o próximo milénio», tradução portuguesa (Teorema) de um título um pouco mais extenso em italiano: «Lezioni americane - Sei proposte per il prossimo milennio.

O título do livro é já um bom indicador do seu otimismo: não se fala em propor algo para os dias, meses ou anos seguintes, mas antes, de um modo bem mais claro e abrangente, para o «próximo milénio». Este negócio das letras, a literatura, segundo Calvino, apesar de todos os ventos que sopram em contrário, está aí para durar, pelo menos durante os próximos mil anos. «A minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com os seus meios específicos pode dar-nos.» É por isso que a preparação destas seis conferências, no dizer de Esther Calvino, se tornou rapidamente numa verdadeira obsessão para o escritor.

Cada conferência girava em torno de uma oposição. A primeira delas, por exemplo, cujo título era Leveza, opunha-se ao peso. O autor escolhe  defender as razões da leveza, não porque o peso não tenha igualmente as suas razões, como explica, mas simplesmente porque acha que tem mais coisas a dizer sobre a leveza. A começar por algo relativo à sua obra: «Após quarenta anos a escrever fiction, depois de ter explorado vários caminhos e realizado experiências diversas, chegou a altura de procurar uma definição de conjunto do meu trabalho; poderei propor esta: a minha operação foi na maioria das vezes uma subtracção de peso, tentei tirar peso ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; sobretudo tentei tirar peso à estrutura do conto e à linguagem.»

Subtração de peso: uma única frase que ata os diversos fios de uma obra (de uma vida?). Poder chegar a esta fórmula rápida, exata, concisa! Como poderia isto não ser uma obsessão do escritor?

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Botões de real...

Há alguns anos vi um filme que, embora sendo preferencialmente dirigido a um público infantil, acabou por me interessar deveras. Chamava-se Coraline e era baseado no livro com o mesmo nome do escritor britânico Neil Gaiman.

Resumidamente, o filme conta a história da pequena Coraline, uma menina de onze anos que se muda com a sua família, pai e mãe, para uma casa enorme. Rapidamente se aborrece, uma vez que o pai e a mãe, cada qual com seus afazeres, não ligam nenhuma à pequena. É então que ela descobre, numa das suas incursões pela casa, uma porta secreta que dá acesso a uma outra casa em tudo igual à primeira com exceção de um pequeno pormenor: nesta nova casa tudo é perfeito. Como se ela representasse o triunfo do princípio prazer frente à realidade: pais maravilhosos, que satisfazem todos os seus desejos, ante uns pais que são basicamente uns chatos e que passam o tempo a trabalhar e a resolver assuntos que nada têm a ver com ela.

Maus pais, bons pais: seria talvez demasiado fácil, mas também simplista, proceder a uma leitura «kleiniana» do filme. Para mim, desde a primeira vez que o vi, o mais significativo sempre foi a pequena mancha no quadro, algo que borra a perfeição. Com efeito, no lugar de cada olho, estas supostas figuras perfeitas, pai e mãe alternativos, têm botões. Pequeno pormenor que, não obstante, vai ganhando aos poucos uma dimensão cada vez mais perturbadora, sobretudo quando a pequena Coraline é confrontada com uma escolha: para ficar para sempre naquele mundo perfeito, como deseja, tem apenas de sacrificar uma coisa: os olhos. Ou seja: substituir os seus lindos olhos por botões. É neste momento que ela recua, sendo então capaz de ver que, afinal, aquela mãe supostamente perfeita não passa de uma bruxa má que aprisiona crianças infelizes de suas famílias, substituindo os seus olhos por botões. Em desespero, ela consegue fugir para o outro mundo, descobrindo que também os seus verdadeiros pais tinham sido entretanto aprisionados, tendo de fazer um esforço heróico, corajoso, para repor tudo no seu lugar. Clássico! Repor a ordem onde um real se mostrou demasiado perturbador. Aquilo que parecia um sonho, revela-se afinal um pesadelo de que é preciso acordar. A pequena Coraline escolhe a realidade, reconfortante, após ter sido confrontada com dois botões de real, digamos assim. A lição do filme poderia ser esta: mais vale a triste realidade do que um desejo que arrisca, no limite, fazer perder os olhos.

Achei interessante confrontar a pequena Coraline com Édipo; não o do Complexo de Édipo, pois Édipo não tinha complexos, mas o Édipo que quis saber, que não vacilou, e por isso arrancou os olhos quando descobriu a verdade. O Édipo pai de Antígona, também ela arriscando tudo para não abdicar do seu desejo. O Édipo, enfim, que já não tinha nada a perder porque tinha perdido tudo.

Mas Coraline, por seu lado, nos ensina também: de uma forma ou de outra, cada um de nós acabará confrontado, mais cedo ou mais tarde, com os seus botões de real. E terá de escolher. Não forçosamente entre perder ou não perder os olhos - é esse talvez o limite desta «clínica do olhar» - mas antes: perder ou não perder a oportunidade, quando for o caso, de falar disso que nos perturba, isto é, dos nossos botões de real.

Não foi essa a lição de Freud, ele que também não desistiu do seu desejo, por mais que se extraviasse por vezes? Não desistindo, ele inventou uma coisa nova. Chama-se a isso, ainda hoje: psicanálise. Um botão de real?