sábado, 13 de dezembro de 2014

Primeiro estranha-se...

Primeiro estranha-se, depois entranha-se. É conhecida a frase de Pessoa. Para não fugir à regra, como se diz, eu mesmo comecei por estranhar. Primeiro estranhei, depois entranhei: aquilo também me dizia respeito.

Falava-se de psicanálise e filosofia do seguinte modo: muitos psicanalistas seriam, na verdade, filósofos. Ao contrário da medicina, por exemplo, a filosofia, segundo o raciocínio implícito, não daria garantias de um saber-fazer. Pois bem! Tendo eu uma formação filosófica e tendo-se dado o meu encontro com a psicanálise, de orientação lacaniana, no campo da filosofia, dei por mim a pensar: Bingo! Em cheio, na mosca!

Para falar acertadamente, em vez de uma ponte, uma via de acesso, a filosofia quase sempre constituiu uma barreira, uma obstrução. Não serviu para me livrar - e sobretudo para lidar - com nenhuma das minhas inibições, sintomas ou angústias. Onde eu pensava - pois aprende-se a pensar, a pensar...em filosofia - eu hesitava. Como Hamlet. Como se Hamlet fosse a verdade de Descartes, do «eu penso» cartesiano. Há, aliás, uma frase do último Lacan que diz isto de forma bem simples, magistral: «Penso, logo se goza». Eu penso, penso, não paro de pensar, mas aí mesmo, onde eu penso, alguma coisa goza, algo em mim apesar de mim. Por isso, é verdade: a filosofia não garante. Não é uma escada por onde se suba, um andaime que possa evitar a queda. Ela é antes - ou melhor, foi antes, na minha análise, um modo de esquivar-me, de defender-me...

Mas será que a medicina, por exemplo, uma vez que se falava dela por contraposição à filosofia, será mais propícia, mais adequada à psicanálise? Na lição de 10 de dezembro de 1969 do Seminário XVII, Lacan, recordando a sua passagem por Sainte-Anne, fala de um «efeito de obstrução», efeito esse que se manifestou, por exemplo, na tentativa de avaliar o seu ensino pelos critérios do ensino médico; para tal, ele foi submetido a um pequeno inquérito - já então a mania do inquérito, do questionário estava na moda - para averiguar se corresponderia às supostas garantias deste último. Lacan sublinha, não sem ironia, que é evidente que o ensino que ele anima não se enquadra, de modo algum, em tais critérios. A consequência foi um certo incómodo causado pelo facto de, no coração mesmo de um lugar essencialmente médico, Lacan prosseguir um ensino que não o era de todo. Algo que se estranha, neste caso, mas que não consegue entranhar-se. Quando muito, tolera-se. Até mais ver.

Poderíamos ir ainda mais longe e recordar Freud. Num famoso artigo de 1926, ele defende a «psicanálise leiga», isto é, não médica, contra as diversas tentações de a medicalizar. De um certo ponto de vista, e em relação ao desejo propriamente analítico que opera (que pode operar) numa análise, a medicina está em pé de igualdade com a filosofia: não servem basicamente para nada, não garantem nada por si mesmas. Aquilo que garante alguma coisa, venha o sujeito à partida de onder vier, é a travessia da sua própria análise levada tão longe quanto possível. Tal como não há analistas de direita ou de esquerda, também não há analistas-filósofos ou analistas-médicos. Há apenas bons ou maus analistas, que estes tenham vindo da filosofia, da medicina, da psicologia, das artes ou seja lá de onde for. E isso tem um preço! Um preço que nem todos - poucos, aliás - estão dispostos a pagar.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O tempo que passa...

Há uma pergunta que antecede o desenlace do filme Boyhood - Momentos de uma Vida; filme que tive ontem a oportunidade de ver. Cito de cor: somos nós que aproveitamos o momento ou ele que nos aproveita? Tal como acontece numa análise, nem sempre as perguntas são para responder no imediato; elas podem fazer corte. E, na verdade, o filme termina logo a seguir. Esta é, pois, uma questão que funciona como um ponto de: basta! Um ponto de basta ao fim de três horas, ao fim de mais de uma década de filmagens.

O tempo é, efetivamente, o protagonista deste filme. O tempo que escorre, que passa. O tempo do cinema, é certo, mas também o tempo da vida: da vida que se vai fazendo, pois a vida é algo que se faz e que se inventa à medida que se vive. Não há respostas que compreendam a vida toda. E este é um filme rente à vida: ao que nela há de esquivo, de fugidio. Uma tentativa de fixar, de fotografar momentos de uma vida que não cessa de fluir. Entre um momento e outro, a vida passa. Se não aproveitarmos o momento, será que ele, de algum modo, nos aproveita? Ou tudo se perde?

Talvez este filme não seja uma obra-prima, apesar de todas as críticas favoráveis e da adesão dos espectadores (a sala estava completamente cheia), mas é um filme que se vai insinuando, que se vai adensando. Como a vida. Sempre junto à relva, junto à vida. Para quem for à procura de resposta, não as encontra. Não há ali um Outro que possa dizer a cada um, de forma clara e objetiva, o que é a vida e, sobretudo, como vivê-la. E quando alguém tenta colar-se demasiado a esse lugar, parece sempre que vem aí o pior. Ou, pelo menos, a ideia-feita, o lugar-comum.

Por isso, há certas perguntas que devem permanecer sem resposta: somos nós que aproveitamos o momento ou ele que nos aproveita? Eis um modo de concluir bem singular: não empacotando a vida numa fórmula, numa resposta, mas, pelo contrário, deixando a vida escancarada.

sábado, 25 de outubro de 2014

Que Deus nos livre!




Viver é desarrumar. Quanto mais se vive, mais se desarruma. Há coisas que vão ficando pelo chão, fora do lugar. A bagunça não para de ganhar a casa. Parece que em linguagem mais técnica se chama a isto entropia. Nomes para falar de coisas. Coisas que se gastam com o tempo. Tempo que não há. Coisas que não. E pó. Um pó sujando continuamente os móveis por mais que se limpem. Pois não é verdade que o pano que limpa o móvel é também o que fica sujo através do mesmo girar de mãos?

Há também nas palavras que falamos, e não só na vida, uma permanente desarrumação. A linguagem é um mito. A calmaria da linguagem frente ao mar da língua – essa língua feita de ondas, marés, remoinhos – é apenas um sonho que os clássicos sonharam. Fora isso: estraçalhamento. Esfrangalhamento.  A língua está sempre à beira do inarticulável, do ingovernável. À beira do erro. Da curva onde o erro dá certo, apesar de. A língua é um permanente desacordo consigo mesma. Sempre em risco de partir-se em duas. Ou de explodir em muitas. De multiplicar-se. 

É por isso que não vai dar certo. Um acordo ortográfico é algo que está certo (politicamente falando, pois são os políticos que definem, em assembleia, o que é certo), mas que o tempo converte em errado. Todos os acordos (politicamente corretos) dão errado com o tempo. E alguns começam instantaneamente de forma errada. De facto. De fato. Quando chega um acordo ortográfico para embarcar, já o desacordo entre os falantes há muito descolou da pista. Ou decolou?

E não digo que não deva tentar-se. Mas, quer se tente ou não, haverá sempre desacordo na língua. A língua está imbuída de uma substância viscosa que a faz patinar. Houve quem lhe chamasse pulsão. Houve quem lhe chamasse gozo. Houve quem lhe chamasse outra coisa qualquer. Seja como for, será. A língua não se domestica, não se d’homem-estica. Só em parte obedece. É a eterna aprendizagem de uma liberdade em desequilíbrio. 

Por isso, “ (…) cada um tem o direito a escrever na ortografia que quiser; que, tecnicamente, pode haver tantas ortografias quantos há escritores.» (Fernando Pessoa, A língua portuguesa, Assírio & Alvim). 

A não ser que, politicamente falando, haja igualmente quem pretenda acabar com os escritores para que já só restem funcionários do Acordo…Que Deus nos livre!