terça-feira, 24 de março de 2015

Em jeito de homenagem...



Tenho uma história com Herberto Hélder.

Quando era ainda estudante de filosofia, na UNL, descobri, quase simultaneamente, duas personagens que iriam ter um forte impacto no curso posterior da minha vida e, sobretudo, dos meus interesses: Jacques Lacan, um psicanalista, e Herberto Hélder, um poeta. O maior psicanalista depois de Freud e o maior poeta português depois de Fernando Pessoa: que feliz coincidência!

De Lacan, devo dizer, não conhecia praticamente nada; apenas um livro que li numa tradução brasileira: Mais, ainda. De Herberto Hélder nada tinha lido ainda, mas já um título me agarrara: Poesia toda. Era como se aquele livro, ainda fechado, contivesse a chave-mestra, a senha para aceder a toda a poesia do mundo. Seria possível que ela, a poesia, coubesse toda num único livro?

Rapidamente descobri que se tratava de um livro em andamento, que engordava a cada passo. Como o horizonte que se vai afastando à medida que nos aproximamos dele, também aquele livro era irrequieto. O título marcava, de tempos a tempos, o ritmo das estações do poeta. Cada vez mais volumoso, nele cabiam os trabalhos que o seu ofício cantante não parava de trazer a lume para nosso contentamento.

Então, certo dia, aconteceu aquilo: atrevi-me a ler a Poesia toda – imagine-se! – com as lentes que eu enxergava na altura em Lacan. Devo dizer que o atrevimento me saiu caro. E por justa causa! Não só porque de Lacan eu sabia ainda muito pouco, quase nada, se é que hoje sei muito mais, mas sobretudo porque cometi um erro de principiante: o de pensar que a poesia é para ser compreendida. E quando se tenta compreender a poesia, abarcá-la toda, encaixá-la nesta ou naquela redoma de sentido, é caso para dizer, como eu ouvi, e por justa causa: delírio, isso é apenas um delírio, um puro delírio!

Por isso, contra o puro delírio do sentido, e ao pé da letra, «seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro», como diz o poeta em a Morte sem Mestre, o seu último livro.

Obrigado, Herberto Hélder, pela Poesia toda. Juro que não vou compreendê-la. Nem mesmo quando a poesia toda se mudou em Poemas Completos.

quarta-feira, 4 de março de 2015

É por estas e por outras...

Cada vez mais a ciência, com ou sem consciência, como diria Edgar Morin, dita a lei, É nela que reside hoje o princípio de autoridade. Se ela diz, é porque é certo, é objetivo, deve ser levado em conta. Não apenas levado em conta, mas respeitado. Não apenas respeitado, mas seguido à letra. Não apenas seguido à letra, mas obrigatoriamente seguido: como um mandamente. Será ela fundamentalista?

Umas das áreas mais con-sagradas da ciência nos últimos anos é a biologia, em particular a genética e a neurociência.Tudo parece explicável à luz da genética e da neurociência: do mais simples ao mais complexo, do mais óbvio ao mais obscuro, do normal ao patológico. Uma teoria de tudo. Será ela fundamentalista?

Segundo um estudo recente na área da genética, parece que a humanidade se divide em dois: os que pereferem o sossego e os que gostam de viajar. O que decide a pertença a um dos lados não é a história de cada um, o contexto que nos viu nascer ou formou, o modo como se reagiu subjetivamente a este ou àquele evento, como nos apropriamos desta ou daquela experiência marcante, como fomos tocados por certas palavras cujo efeito se tornou persistente, como o nosso próprio corpo já não é mais simplesmente um corpo nu, uma vida nua, mas um emaranhado complexo, uma tapeçaria onde a carne é (ab)sorvida pelos significantes primordiais que o costuram... Não, nada disso. Aquilo que decide, que determina é um gene: DRD4.

Não sei se tenho este gene, embore goste de viagens, mas tenho alguma capacidade de apreciar uma boa proposta, um bom argumento. E confesso que este tem a vantagem de ser económico: reduzir a humanidade a duas partes, segundo a presença ou a ausência de um único gene, é obra. E faria as delícias de Ockham, para quem, na explicação de um fenómeno, se deve contar apenas com o estritamente necessário! Mas, sinceramente, poderá esta explicação dizer por que viajo agora ou mais mais tarde, com esta pessoa e não com aquela, sozinho ou acompanhado, para este ou aquele lugar? Poderá ela dizer por que razão, mesmo parados, há aqueles que não param de viajar, de sentir muito e de todas as maneiras, viajando estaticamente, num permanente desassossego? Poderá ela entender até que ponto muitos daqueles que viajam não param de não sair do mesmo lugar, levando-se consigo até ao fim do mundo, sempre com os mesmos tiques? Para entender o gosto por viajar (ou não viajar) não será preciso contar, não com um gene, seja ele qual for, mas com o corpo todo, a alma toda, a vida toda?

Serei eu que não compreendo, que sou fundamentalista, ou a ciência, por vezes, se aproxima perigosamente da estupidez? Mesmo quando é movida pelas melhores intenções. Já agora, quais são as intenções de um estudo como este?

É por estas e por outras que, ao gene da explicacão genética, eu prefiro o gen(e)ial da explicação poética.