sábado, 28 de fevereiro de 2015

Será que consigo?

Uma língua é feita para quê? Para nos entendermos não é certamente. Ou será que será?

Numa conversa transatlântica, mas cujos falantes habitavam a mesma língua, a saber, o português, ela disse,  a certa altura, numa espécie de lamento: «Sinto que o meu dia foi improdutivo. Gostava de estudar, mas não consigo».

É verdade que o tempo é a única coisa que não estica nesta época líquida. O tempo não é de plástico. Ou será que será? Seja como for, eu perguntei: «Não comigo»?

Ela não entendeu a pergunta, o jogo de palavras. Mesmo se as regras da língua são basicamente as mesmas,  nem por isso estávamos jogando o mesmo jogo de linguagem. Ou então, sendo um pouco mais preciso, a língua não tinha a mesma ressonância nem se escutava da mesma forma de um lado  e outro do Atlântico. E nem o Acordo Ortográfico nos servia neste caso!

«Como», perguntou ela?

«Comigo!» Você disse: «consigo», o que neste lado do Atlântico significa também: «com você». Então, eu tomei a liberdade, a selvejaria de pensar que você não gostaria de estudar comigo.

Ela riu.

Lacan lembrava por vezes que uma análise apenas acontece numa língua particular. Por exemplo, o português. Mas tal não quer dizer que esta seja a língua comum, a língua de toda a gente, aquela que todos os falantes falam. Há na língua uma selvejaria, uma espécie de loucura que a faz sair constantemente dos eixos. Um movimento para fora dela mesma: centrífugo, êxtimo. Talvez por isso Lacan tivesse forjado o neologismo: «alíngua», numa só palavra. Podem vir os Acordos Ortográficos que quiserem que alíngua, numa só palavra, continuará eternamente a desarrumar as boas maneiras da língua.

Consta que Guimarães Rosa, que gostava de estudar línguas estrangeiras, a ponto de falar mais de dez, decidiu um dia estudar vietnamita. Tendo sido questionado a respeito, ele disse: «Para entender melhor o português.»

Fiquei de repente com vontade de estudar vietnamita. Será que consigo?

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O mais profundo...

Eu aspirava a ser profundo. Não dizia, como Herberto Helder, que Deus me fizesse um poeta obscuro, mas um pensador profundo. E invejava aqueles que eram ou pareciam ter conseguido um tal feito: a profundidade. Até a psicanálise, a princípio, me atraía porque alguém decidiu chamar-lhe, embora incorretamente, psicologia das profundezas. O erro convinha-me, jogava a meu favor. A profundidade era o meu elemento, a minha vocação. E havia, inclusive, um certo hermetismo, uma sombra ligada à profundidade. Os pensadores profundos gostam de vender caro as palavras. De sugerir que é preciso escavar muito e demoradamente para chegar ao âmago da coisa. Quanto mais hermético, mais profundo. Não lhes basta a camada exterior da pele, é preciso alcançar a derme, a parte mais interior.

Até que fui de repente sacudido por uma frase: «o mais profundo é a pele». Confesso que não entendi logo. Talvez ainda hoje não a entenda bem: em toda a sua profunda simplicidade. É uma daquelas frases que valem uma vida. Talvez uma vida - e por que não dizer, uma psicanálise - se pudesse resumir assim: uma única frase dita claramente na sua mais profunda e simples concisão.

Foi em Deleuze, quando lia pela primeira vez A Lógica do Sentido, que deparei com esta frase. Mais tarde, lembrava-me sempre dela como sendo uma frase de Deleuze. Mas tal não é efetivamente o caso. Era preciso um poeta, mais do que um pensador profundo, para rasgar a clareira onde o brilho desta frase pudesse eclodir em toda a sua brevidade, em toda a sua clareza. A Paul Valéry coube este feito. Ao poeta o que lhe é devido.

Dizer que o mais profundo é a pele, mesmo se parece jogar com a oposição entre o mais e o menos, o mais profundo e menos profundo, aquilo que na verdade ela exprime é um entrançado. Melhor dizendo: uma torção do espaço de tal modo que já não há mais oposição entre os opostos, a superfície e a profundidade, havendo pelo contrário um único lado contínuo que se prolonga e desdobra. Há um nome, aliás, para esta singular figura: Banda ou fita de Möebius. Uma figura de um só lado, embora aparente ter dois. Escher desenhou-a. Lacan não cessou de referir-se a ela.

 É nesta superfície, de um só lado, que se vão entrançando os fios que (des) atam a nossa história: à flor da pele, à flor da letra. Eis onde convém aprender a ler.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Escrita inteligente?

Chamam-lhe: escrita inteligente. Eu preferia, se pudesse, chamar-lhe: uma estupidez. O disparate à solta. Quantas vezes dei por mim a escrever isto e saiu aquilo. Uma salada. Graças à escrita inteligente, eu disse mal. Ou não disse o que era preciso dizer. Ou disse outra coisa, ao lado. Ou me desentendi, me fiz desentender. Ou entender errado, ao contrário.Talvez por isso se aplique, à escrita inteligente, o termo usado por Lacan na lição de 12 dezembro de 1972 do seminário Encore: une bêtise. Prefiro, de longe, a inteligência da escrita - sempre fazendo escrever direito por linhas tortas - à escrita inteligente, sempre escrevendo torto por linhas direitas.

Ainda assim: não é verdade que a escrita inteligente, pelo menos a lógica que a sustenta, é um pouco como o inconsciente: um automatismo que faz série dos nossos acasos? De tal modo que, a partir de certa altura, até parece que já estava escrito, que a escrita tem uma inteligência que nos escapa, que nos furta, que nos fala, que nos falha. Aliás, Lacan chegou a comparar o inconsciente a uma máquina: algo movido ou trabalhando com suas leis próprias independentemente do (querer do) sujeito. Aí onde eu quero, a inteligência da máquina advém para me tramar, isto é, para enredar numa trama o que eram apenas acasos sem lei e sem sentido.

O que fazer, então, quando a escrita inteligente, na sua estupidez, me faz fal(h)ar? Habituada a mim, mais do que eu próprio, que sempre convivo mal comigo mesmo, ela convida-me a assumir o erro, o lapso, como se também me pertencesse - ou essencialmente me pertencesse - aquilo que me estranha.