sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O mais profundo...

Eu aspirava a ser profundo. Não dizia, como Herberto Helder, que Deus me fizesse um poeta obscuro, mas um pensador profundo. E invejava aqueles que eram ou pareciam ter conseguido um tal feito: a profundidade. Até a psicanálise, a princípio, me atraía porque alguém decidiu chamar-lhe, embora incorretamente, psicologia das profundezas. O erro convinha-me, jogava a meu favor. A profundidade era o meu elemento, a minha vocação. E havia, inclusive, um certo hermetismo, uma sombra ligada à profundidade. Os pensadores profundos gostam de vender caro as palavras. De sugerir que é preciso escavar muito e demoradamente para chegar ao âmago da coisa. Quanto mais hermético, mais profundo. Não lhes basta a camada exterior da pele, é preciso alcançar a derme, a parte mais interior.

Até que fui de repente sacudido por uma frase: «o mais profundo é a pele». Confesso que não entendi logo. Talvez ainda hoje não a entenda bem: em toda a sua profunda simplicidade. É uma daquelas frases que valem uma vida. Talvez uma vida - e por que não dizer, uma psicanálise - se pudesse resumir assim: uma única frase dita claramente na sua mais profunda e simples concisão.

Foi em Deleuze, quando lia pela primeira vez A Lógica do Sentido, que deparei com esta frase. Mais tarde, lembrava-me sempre dela como sendo uma frase de Deleuze. Mas tal não é efetivamente o caso. Era preciso um poeta, mais do que um pensador profundo, para rasgar a clareira onde o brilho desta frase pudesse eclodir em toda a sua brevidade, em toda a sua clareza. A Paul Valéry coube este feito. Ao poeta o que lhe é devido.

Dizer que o mais profundo é a pele, mesmo se parece jogar com a oposição entre o mais e o menos, o mais profundo e menos profundo, aquilo que na verdade ela exprime é um entrançado. Melhor dizendo: uma torção do espaço de tal modo que já não há mais oposição entre os opostos, a superfície e a profundidade, havendo pelo contrário um único lado contínuo que se prolonga e desdobra. Há um nome, aliás, para esta singular figura: Banda ou fita de Möebius. Uma figura de um só lado, embora aparente ter dois. Escher desenhou-a. Lacan não cessou de referir-se a ela.

 É nesta superfície, de um só lado, que se vão entrançando os fios que (des) atam a nossa história: à flor da pele, à flor da letra. Eis onde convém aprender a ler.

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