Viver é desarrumar. Quanto mais
se vive, mais se desarruma. Há coisas que vão ficando pelo chão, fora do lugar.
A bagunça não para de ganhar a casa. Parece que em linguagem mais técnica se chama a isto entropia. Nomes para falar de coisas. Coisas que se gastam com o
tempo. Tempo que não há. Coisas que não. E pó. Um pó sujando continuamente os
móveis por mais que se limpem. Pois não é verdade que o pano que limpa o móvel
é também o que fica sujo através do mesmo girar de mãos?
Há também nas palavras que
falamos, e não só na vida, uma permanente desarrumação. A linguagem é um mito.
A calmaria da linguagem frente ao mar da língua – essa língua feita de ondas, marés,
remoinhos – é apenas um sonho que os clássicos sonharam. Fora isso: estraçalhamento.
Esfrangalhamento. A língua está sempre à
beira do inarticulável, do ingovernável. À beira do erro. Da curva onde o erro
dá certo, apesar de. A língua é um permanente desacordo consigo mesma. Sempre em
risco de partir-se em duas. Ou de explodir em muitas. De multiplicar-se.
É por isso que não vai dar certo.
Um acordo ortográfico é algo que está certo (politicamente falando, pois são os
políticos que definem, em assembleia, o que é certo), mas que o tempo converte
em errado. Todos os acordos (politicamente corretos) dão errado com o tempo. E
alguns começam instantaneamente de
forma errada. De facto. De fato. Quando chega um acordo ortográfico para
embarcar, já o desacordo entre os falantes há muito descolou da pista. Ou
decolou?
E não digo que não deva
tentar-se. Mas, quer se tente ou não, haverá sempre desacordo na língua. A língua
está imbuída de uma substância viscosa que a faz patinar. Houve quem lhe
chamasse pulsão. Houve quem lhe chamasse gozo. Houve quem lhe chamasse outra
coisa qualquer. Seja como for, será. A língua não se domestica, não se d’homem-estica.
Só em parte obedece. É a eterna aprendizagem de uma liberdade em desequilíbrio.
Por isso, “ (…) cada um tem o
direito a escrever na ortografia que quiser; que, tecnicamente, pode haver
tantas ortografias quantos há escritores.» (Fernando Pessoa, A língua
portuguesa, Assírio & Alvim).