sábado, 25 de outubro de 2014

Que Deus nos livre!




Viver é desarrumar. Quanto mais se vive, mais se desarruma. Há coisas que vão ficando pelo chão, fora do lugar. A bagunça não para de ganhar a casa. Parece que em linguagem mais técnica se chama a isto entropia. Nomes para falar de coisas. Coisas que se gastam com o tempo. Tempo que não há. Coisas que não. E pó. Um pó sujando continuamente os móveis por mais que se limpem. Pois não é verdade que o pano que limpa o móvel é também o que fica sujo através do mesmo girar de mãos?

Há também nas palavras que falamos, e não só na vida, uma permanente desarrumação. A linguagem é um mito. A calmaria da linguagem frente ao mar da língua – essa língua feita de ondas, marés, remoinhos – é apenas um sonho que os clássicos sonharam. Fora isso: estraçalhamento. Esfrangalhamento.  A língua está sempre à beira do inarticulável, do ingovernável. À beira do erro. Da curva onde o erro dá certo, apesar de. A língua é um permanente desacordo consigo mesma. Sempre em risco de partir-se em duas. Ou de explodir em muitas. De multiplicar-se. 

É por isso que não vai dar certo. Um acordo ortográfico é algo que está certo (politicamente falando, pois são os políticos que definem, em assembleia, o que é certo), mas que o tempo converte em errado. Todos os acordos (politicamente corretos) dão errado com o tempo. E alguns começam instantaneamente de forma errada. De facto. De fato. Quando chega um acordo ortográfico para embarcar, já o desacordo entre os falantes há muito descolou da pista. Ou decolou?

E não digo que não deva tentar-se. Mas, quer se tente ou não, haverá sempre desacordo na língua. A língua está imbuída de uma substância viscosa que a faz patinar. Houve quem lhe chamasse pulsão. Houve quem lhe chamasse gozo. Houve quem lhe chamasse outra coisa qualquer. Seja como for, será. A língua não se domestica, não se d’homem-estica. Só em parte obedece. É a eterna aprendizagem de uma liberdade em desequilíbrio. 

Por isso, “ (…) cada um tem o direito a escrever na ortografia que quiser; que, tecnicamente, pode haver tantas ortografias quantos há escritores.» (Fernando Pessoa, A língua portuguesa, Assírio & Alvim). 

A não ser que, politicamente falando, haja igualmente quem pretenda acabar com os escritores para que já só restem funcionários do Acordo…Que Deus nos livre!

domingo, 5 de outubro de 2014

Indigestão de imagens

 «Eu tive uma indigestão de fotógrafos, de filmes e imagens que me perseguiram a vida toda.» (Brigitte Bardot)


Vivemos saturados de imagens. Elas estão por toda a parte, chovem de todos os lados. Não há guarda-chuva que nos proteja delas. Quer isto dizer que estamos hoje mais clarividentes, mais lúcidos ou que vemos mais e melhor?

Nada é menos evidente, tal como demonstra o belo documentário que tive a oportunidade de ver recentemente: Janela da alma. Recheado de personagens famosas (como Saramago ou Wim Wenders, por exemplo), ele dá conta, graças a uma série de testemunhos, de uma «espécie de cegueira generalizada» (Eugen Bavcar) que se aninha no próprio coração das imagens que nos chegam em massa.

A certa altura, Wim Wenders conta que por volta dos trinta anos tentou usar lentes de contacto em vez de óculos, mas deu-se conta de que, mesmo usando lentes de contacto, continuava a procurar os óculos porque, embora vendo bem sem eles, precisava de enquadramento. Como se visse de mais sem um tal enquadramento! E não queria ver tanto, mas de forma mais contida.

É evidente que falamos de alguém, enquanto realizador de cinema, que passa a maior parte do tempo a «enquadrar» o real. Mas, e se a questão fosse mais vasta, concernindo igualmente cada um de nós? Se houvesse um limite a partir do qual já não conseguíssemos enxergar por mais imagens que nos fossem dadas a ver? É o que Eugène Delacroix, por exemplo, escreveu sobre a fotografia: «se o olho tivesse a precisão de um vidro de aumento, a fotografia seria insuportável». Para lá de um certo limite, não conseguimos ver. É insuportável, impossível. Para já não falar do tempo, do seu limite. Como relembrava Wim Wenderes, hoje temos muitas coisas em excesso, nomeadamente imagens, a única coisa que não temos é tempo.

É por isso que Saramago, outro dos ilustres participantes, se perguntava, a certa altura, para quê a existência de tantos canais de televisão? De um certo ponto de vista, é sem dúvida notável, mas - e a comparação é dele - se alguém dissesse que passaríamos a receber quinhentos jornais por dia em nossa casa, não acharíamos isso uma locura? Como é que alguém poderia ler quinhentos jornais todos os dias? E que conclusões ou proveito retiraria de semelhante leitura? Impossível: nem haveria tempo nem proveito.

A crença ingénua de que basta aumentar a quantidade de imagens circulando em rede para que diminua a cegueira do olho (da inteligência, do conhecimento...) choca rapidamente com estes limites: o tempo, o (in) suportável), o impossível de ver. Não considerar tal impossível - exigindo sempre mais ainda - acaba por gerar uma infindável violência, uma pornografia das imagens.

Claro: como o olho não suporta tanta «realidade», acaba por sucumbir ao pânico (afogando-se literalmente num mar de imagens) ou, em alternativa, desenvolver uma estranha forma de insensibilidade: por mais imagens que veja, não fixa nenhuma. Nada permanece. Nada é retido. Nada se inscreve.

Não é o que acontece hoje, na era do facebook?