quarta-feira, 30 de julho de 2014

O peso e a leveza

Um sintoma é geralmente algo pesado. Sério. Grave.

O que é o peso? Uma certa relação entre a massa de um corpo e a gravidade. Talvez por isso, certos comportamentos sintomáticos - prefiro dizer assim em vez do estabelecido «distúbio» ou «perturbação» - erram no alvo: libertando-se da massa, até ficar apenas osso e pele, no pior dos casos, pensam libertar-se do peso. É o caso da anorexia, por exemplo: uma falsa leveza. O sintoma continua pesado, grave, cada vez mais grave.

Não é nesse sentido, por isso, que Italo Calvino opunha a leveza ao peso num livro que tive a felicidade de ler há alguns anos. E porquê elogiar a leveza e não o peso? A nossa cultura e a nossa religião, por exemplo, têm as raizes, o tronco e muitas das suas ramificações no peso. A crença é pesada, o ritual é pesado, o aquém e o além tornam-se pesados. E não é apenas Deus (do antigo testamento) que é pesado, também o diabo é um «espírito de gravidade», como lhe chamava Nietzsche.

O problema da anorética é o espírito de gravidade: perde peso, mas não gravidade. Falta-lhe humor. Não sabe rir. Ou não consegue. É demasiado séria. Um caso sério. Toda a gente sabe que o riso tem o condão de retirar peso a um corpo, mas ao mesmo tempo de lhe retirar gravidade, seriedade. Ela pode até fazer rir os outros, como cozinha igualmente para os outros, enquanto (não) come nada, mas não é capaz de rir do seu sintoma. Rir de si mesma.

Para bem dizer, ela não tem propriamente um sintoma - pois aquilo que ela tem não é sintoma para ela - embora não pare de fazer sintoma para um outro, para outros, no limite para todos aqueles que gravitam à sua volta. O centro de gravitação é ela. Buraco negro que pode engolir a própria luz. Fazendo sacrifício do seu corpo e expondo ao olhar impotente do Outro, à angústia do Outro, a respetiva devastação, como se houvesse nela um desejo perverso, uma «perversão feminina» (segundo a interessantísima hipótese de Alain Abelhauser, num livro extraordinariamente bem escrito: Mal de femme, Seuil, 2013).

O que seria um sintoma descarregado do peso, da gravidade, da seriedade? Eu diria: um sintoma analisado, por exemplo, quando uma análise consegue chegar a esse ponto. Um sintoma que dança como os bailarinos de Pina Baush, no filme de Wim Wenders: Pina. Uma leveza que permite levitar não porque a massa de um corpo se tenha reduzido, à custa de sacrifício - e quão fascinante ele pode ser! - mas porque a gravidade já não atua sobre um corpo da mesma forma.

Ou então, como demonstram certos escritores, como James Joyce por exemplo, quando a matéria (literária) perde a densidade que a torna pesada, o sentido que a en-gravida, e se transforma em puro jogo literal  e sem sentido. Consta que Joyce, quando escrevia Finnegans Wake ria, ria muito, para desgraça de gerações inteiras de intérpretes, de leitores para quem esse riso era uma espécie de afronta: um riso cínico.

Entre o riso Joyciano e uma análise há, pelo menos, um ponto em comum: da letra (letter) ao lixo (litter), vai apenas um passo. Um passo: para a gravidade ceder lugar ao riso, o peso à leveza. Se assim não for, para que serviriam anos de análise e séculos de literatura?

Claro: há quem não consiga da mesma forma - ou não possa por estrutura - livrar-se desta maneira do peso. E a psicanálise, como não é uma moral, uma religião ou uma política (muito menos está ao serviço do politicamente correto), só tem que não resistir, pois, quando resiste, ou se resiste, há sempre o perigo de se transformar ela mesma no espirito de gravidade. O que seria, em abono da verdade, emenda pior que o soneto.

sábado, 26 de julho de 2014

Como manter-se apartado na era pós-apartheid?

Os mortos não gozam. Para gozar, é necessário estar vivo. Só um corpo vivo goza. Foi por isso, talvez, que uma certa religião precisou de inventar o «corpo glorioso». Não bastava ter uma alma, era preciso igualmente um corpo.

Ainda assim, a forma como os vivos gozam condiciona o modo como se imaginam a gozar depois de mortos. O paraíso ou o inferno (leia-se Dante) levaram a coisa até ao extremo da imaginação. Mas acontece que eles têm vindo a perder crédito. A sua cotação baixou no mercado de valores. Há outras formas de imaginar - pois a imaginação quase não tem limites - porventura mais adequadas ao nosso tempo «pós-apartheid». Na verdade, o paraíso e o inferno refletiam, à sua maneira, uma ideologia de «apartheid»: como manter apartados, separados entre si os que gozam desta e daquela maneira.

Com o fim do «apartheid», entramos na era da mistura. Misturamo-nos uns com os outros, cada vez mais. Por reação, despontam fenómenos estranhos. À mistura de facto, respondemos com a «misturofobia» de direito, isto é, tentamos que a lei, as leis - para já não falar em reações mais diretas e brutais - nos protejam da mistura. E isso pode chegar muito longe: até ao além, à eternidade.

Vejamos um exemplo. Astrid Osterland é uma das fundadoras, em Berlim, do primeiro cemitério para feministas e lésbicas. Ela argumenta que, desta forma, «a causa gay fica para a posteridade».  É uma nova e estranha versão do apartheid: manter as «causas» separadas não apenas em vida mas também na morte. Dessa forma, não há mistura possível. A não ser que haja uma violação dos túmulos, pois, como dizia Coetzee em Disgrace, embora num outro contexto, «a violação é a deusa do caos e da mistura».

Com a globalização, a ideologia da tolerância universal, o triunfo da ciência, a expansão dos «mercados comuns»,  para dar apenas alguns exemplos, parecia que todas as formas de segregação, de apartheid ruiriam como muros apodrecidos. Mesmo que Lacan nos tenha avisado há muitos anos atrás de que não era bem assim: «o nosso futuro de mercados comuns encontrará o seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação» (Proposição de 9 de outubro de 1967, Outros Escritos).

Não sendo de Nostradamus, esta parece uma profecia. Uma profecia que se realiza agora de forma inédita, inusitada: em vez de um lamento, de uma queixa relativamente a uma suposta segregação a que teriam sido votadas, o que temos é antes a reivindicação de um direito e a expressão de um desejo: poder manter-se a-partadas para sempre no seu modo de gozo.

Ainda que tenhamos passado da comunidade à rede, segundo Bauman, nem tudo se perdeu: tendem a subsistir, mesmo para além da morte, as comunidades de gozo. Veremos até que ponto este género de reivindicações não trará com ele um novo tipo de racismo, a que poderíamos chamar, recorrendo a um termo da Web, racismo 3.0.: o racismo das comunidades de gozo.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Quando um pai se toma por mestre...



O que devém um pai quando se toma por «mestre do desejo», isto é, uma caricatura paterna, autoritária e tirânica, menos pai que educador? Como dizia Lacan em 1975, «nada pior que o pai que se toma pela lei» (lição de 21 janeiro 1975, Ornicar 3, p.108). Eis um exemplo.

«Ao proclamar-se mestre do desejo, Hermann [Kafka] obstruiu a verdadeira função paterna e revelou o drama que resulta de se fazer dela o estrito funcionário. (…) De Hermann, nada emanava nunca para o seu filho para humanizar o seu desejo e constituir, para ele, um ponto de garantia de um bom encontro com o outro sexo, uma bússola que lhe teria permitido orientar-se no labirinto da sexualidade. (…) Literatura ou coito para fazer amor com uma mulher permaneceram assim, até ao fim da vida do escritor, duas vias irreconciliáveis que ele teve de agrimensurar (arpenter) separadamente. O sexo no bordel (…) e o amor em linhas de escrita, já não portanto num leito que se tornaria conjugal, mas numa mesa de trabalho que o substituiria quase por completo.» (Cf. Yohan De Screyver, “Hermann Kafka, funcionário do Nome-do-Pai”)

E se podemos lamentar alguma coisa em Kafka, não é que a sua obra não seja suficientemente edipianizável, mas antes o oposto: que ela esteve quase a ser destruída, para nossa desgraça, devido ao peso excessivamente «tóxico» do pai na sua vida. Por um golpe de sorte - e graças a um ato de traição do melhor amigo - tal não aconteceu. É por isso que hoje podemos ler esta obra singular para além do pai.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Elogio da imprudência

Ontem, a Alemanha ganhou o final da copa sem surpresas. Uma máquina eficaz. Na era da técnica, são as máquinas eficazes que ditam a regra, o andamento das coisas. Mesmo se Descartes parece ter caído em desuso, como acreditam muitos, o seu Discurso do método foi, na verdade, o vencedor de ontem. Com a vitória da Alemanha, ganhou o discurso do método.

O que poderíamos nós, cheguei questionar-me, contrapor ao Discurso do método? E só me ocorreu um livro: a Arte da prudência, de Baltasar Gracián. Contra o discurso do método, a arte da prudência. Na verdade, este foi o meu livro de cabeceira durante muitos anos. Uma espécie de bíblia. Uma bíblia para quem deixou de ler a bíblia.

A Arte da prudência contrapõe-se ao discurso do método como o líquido se opõe ao sólido, ou um mundo instável e imprevisível a um mundo que se pode prever. No fundo, a arte da prudência é uma sábia, oportuna e discreta gestão das aparências num mundo pouco fidedigno, sem garantia. Como saber-fazer quando o método nos falha, a verdade se torna mentirosa, a realidade se mostra um jogo de aparências em contínua mutação? Resposta de Gracián: prudência! É por isso que ele é mais contemporâneo ainda que Descartes.

A arte é por definição o que não é redutível ao método, à técnica. A arte da prudência é, antes de mais, uma ética: um modo de agir num mundo arriscado, perigoso, sem clareza e distinção. Mas sejamos, ainda assim, claros: se a Alemanha ganhou, não foi apenas devido ao discurso do método, que tão bem pôs em prática, mas porque soube igualmente adaptar-se ao imprevisível, fazer algo de eficaz com ele, reagindo às mudanças táticas e estratégicas do adversário. Uma máquina eficaz é também, cada vez mais, um mecanismo plástico, adaptativo, reajustável. Veja-se o golo da vitória da Alemanha: um casamento feliz entre a arte e o método, a técnica e a arte, o instante de receber a bola no peito, de ajeitá-la no pé e, sem a deixar cair no chão, concluir com um fabuloso remate. O jogador alemão encheu o pé, como se diz, e cheio de confiança, mostrou o que significa: momento oportuno. Como diria B. Gracián, «é preciso caminhar pelos espaços abertos do tempo até ao centro da ocasião oportuna». Eis o que fez Mario Götze, da Alemanha, aos 113 minutos da partida: percebendo que chegara o seu momento, soube aproveitá-lo.

As máquinas estão por todo o lado e não apenas no sentido metafórico. O mundo tornou-se maquínico.  Sem as máquinas, cada vez menos rígidas, mais plásticas, seria bem mais difícil, mais lento e menos eficaz proceder a um sem número de tarefas, de atividades. Foi por isso que eu, sujeito como todos os demais à era da técnica, me perguntei se a máquina não poderia ajudar a resolver o meu problema. E qual era o meu problema?

Se houve domínio em que as máquinas evoluíram foi na área da tradução automática. Elas aliam hoje a rapidez de processamento à quantidade de informação disponível, mobilizável, bem como à capacidade, cada vez maior, para conjugar os planos da sintaxe, da semântica e da pragmática. Além disso, elas são trabalhadoras incansáveis, ideais, mesmo se precisam de energia e, por vezes, também têm os seus achaques. Mas porque será então que, no instante em que fui assaltado pelo meu problema, a máquina ficou baralhada e só me deu o óbvio, o impasse, nada de muito aproveitável? Mesmo com tantas máquinas trabalhando de forma sincronizada, em uníssono, para me ajudar, eu continuava sozinho com o meu problema: como traduzir o termo «dupe»? Eis o problema: um termo só, uma palavra.

Importa dizer que eu tentava traduzir um texto de Jacques-Alain Miller: O Inconsciente e o corpo. É o texto de apresentação do próximo congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) que vai ter lugar em 2016 no Rio de Janeiro. A certa altura, Jacques-Alain Miller diz que se trata de ser (ou de se fazer) «dupe d'un réel». Como traduzir, neste caso, «dupe»?

Antes do triunfo máquina, havia já o dicionário: um subproduto, um rebento da entrada na era da máquina. Fui ao dicionário. Achei. «Être dupe de»: deixar-se enganar com, deixar-se iludir por. A coisa não estava fácil. Até porque eu sabia, conhecendo algo de Lacan, que o real desengana mais do que engana. É nesse sentido que ele afirma, no Seminário X, que a angústia é um afeto que não engana, uma vez vez que provém do real, que toca num real. Além disso, num outro Seminário posterior, Lacan fala dos «non-dupes»...que erram; dos que erram, isto é, que vivem errantes, em errância porque não se deixam enganar pelo simbólico (pelo nome do pai?) ou pelo imaginário (pelo sentido?). Assim, como traduzir a expressão: ser ou fazer-se «dupe» de um real?

Quanto mais eu tentava, mais desesperava. Parecia impossível. Senti-me desarmado, desprotegido. Pateta. Aliás, é este um dos significados do termo «dupe»: pateta. E por que não? Fazer-se «dupe» de um real não seria, porventura, consentir em ser pateta? Ou, dizendo de outra maneira: contra a sensatez da razão, do sentido, que sempre nos guarda ou serve de escudo frente ao real, não haveria que tornar-se pateta, mais do que isso, tolo de um real? Neste aspeto a máquina, curiosamente, também não conseguia ajudar-me, não porque a tradução que me propunha não tivesse sentido, mas antes porque o sentido que me dava não era suficientemente insensato para dar conta de um real. Ela não era suficientemente tola, pateta. Uma máquina pateta: isso sim, algo que seria de temer!

Acabei por consentir no termo, fazendo-me tolo de um real...ao pé da letra. E voltando a pensar em Descartes e Baltasar Gracián, perguntei a mim mesmo: mais do que um discurso do método ou uma arte da prudência, não haveria que fazer aqui um certo elogio da imprudência? Aquela imprudência que nos desarruma, que nos desarma, que desarma as nossas defesas (imaginárias), que nos torna patetas, tolos...frente a um real? Um real que talvez exija uma arte, sim, e porventura a mais difícil das artes: a arte da imprudência.