sábado, 26 de julho de 2014

Como manter-se apartado na era pós-apartheid?

Os mortos não gozam. Para gozar, é necessário estar vivo. Só um corpo vivo goza. Foi por isso, talvez, que uma certa religião precisou de inventar o «corpo glorioso». Não bastava ter uma alma, era preciso igualmente um corpo.

Ainda assim, a forma como os vivos gozam condiciona o modo como se imaginam a gozar depois de mortos. O paraíso ou o inferno (leia-se Dante) levaram a coisa até ao extremo da imaginação. Mas acontece que eles têm vindo a perder crédito. A sua cotação baixou no mercado de valores. Há outras formas de imaginar - pois a imaginação quase não tem limites - porventura mais adequadas ao nosso tempo «pós-apartheid». Na verdade, o paraíso e o inferno refletiam, à sua maneira, uma ideologia de «apartheid»: como manter apartados, separados entre si os que gozam desta e daquela maneira.

Com o fim do «apartheid», entramos na era da mistura. Misturamo-nos uns com os outros, cada vez mais. Por reação, despontam fenómenos estranhos. À mistura de facto, respondemos com a «misturofobia» de direito, isto é, tentamos que a lei, as leis - para já não falar em reações mais diretas e brutais - nos protejam da mistura. E isso pode chegar muito longe: até ao além, à eternidade.

Vejamos um exemplo. Astrid Osterland é uma das fundadoras, em Berlim, do primeiro cemitério para feministas e lésbicas. Ela argumenta que, desta forma, «a causa gay fica para a posteridade».  É uma nova e estranha versão do apartheid: manter as «causas» separadas não apenas em vida mas também na morte. Dessa forma, não há mistura possível. A não ser que haja uma violação dos túmulos, pois, como dizia Coetzee em Disgrace, embora num outro contexto, «a violação é a deusa do caos e da mistura».

Com a globalização, a ideologia da tolerância universal, o triunfo da ciência, a expansão dos «mercados comuns»,  para dar apenas alguns exemplos, parecia que todas as formas de segregação, de apartheid ruiriam como muros apodrecidos. Mesmo que Lacan nos tenha avisado há muitos anos atrás de que não era bem assim: «o nosso futuro de mercados comuns encontrará o seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação» (Proposição de 9 de outubro de 1967, Outros Escritos).

Não sendo de Nostradamus, esta parece uma profecia. Uma profecia que se realiza agora de forma inédita, inusitada: em vez de um lamento, de uma queixa relativamente a uma suposta segregação a que teriam sido votadas, o que temos é antes a reivindicação de um direito e a expressão de um desejo: poder manter-se a-partadas para sempre no seu modo de gozo.

Ainda que tenhamos passado da comunidade à rede, segundo Bauman, nem tudo se perdeu: tendem a subsistir, mesmo para além da morte, as comunidades de gozo. Veremos até que ponto este género de reivindicações não trará com ele um novo tipo de racismo, a que poderíamos chamar, recorrendo a um termo da Web, racismo 3.0.: o racismo das comunidades de gozo.

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