terça-feira, 15 de julho de 2014

Quando um pai se toma por mestre...



O que devém um pai quando se toma por «mestre do desejo», isto é, uma caricatura paterna, autoritária e tirânica, menos pai que educador? Como dizia Lacan em 1975, «nada pior que o pai que se toma pela lei» (lição de 21 janeiro 1975, Ornicar 3, p.108). Eis um exemplo.

«Ao proclamar-se mestre do desejo, Hermann [Kafka] obstruiu a verdadeira função paterna e revelou o drama que resulta de se fazer dela o estrito funcionário. (…) De Hermann, nada emanava nunca para o seu filho para humanizar o seu desejo e constituir, para ele, um ponto de garantia de um bom encontro com o outro sexo, uma bússola que lhe teria permitido orientar-se no labirinto da sexualidade. (…) Literatura ou coito para fazer amor com uma mulher permaneceram assim, até ao fim da vida do escritor, duas vias irreconciliáveis que ele teve de agrimensurar (arpenter) separadamente. O sexo no bordel (…) e o amor em linhas de escrita, já não portanto num leito que se tornaria conjugal, mas numa mesa de trabalho que o substituiria quase por completo.» (Cf. Yohan De Screyver, “Hermann Kafka, funcionário do Nome-do-Pai”)

E se podemos lamentar alguma coisa em Kafka, não é que a sua obra não seja suficientemente edipianizável, mas antes o oposto: que ela esteve quase a ser destruída, para nossa desgraça, devido ao peso excessivamente «tóxico» do pai na sua vida. Por um golpe de sorte - e graças a um ato de traição do melhor amigo - tal não aconteceu. É por isso que hoje podemos ler esta obra singular para além do pai.

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