quarta-feira, 4 de março de 2015

É por estas e por outras...

Cada vez mais a ciência, com ou sem consciência, como diria Edgar Morin, dita a lei, É nela que reside hoje o princípio de autoridade. Se ela diz, é porque é certo, é objetivo, deve ser levado em conta. Não apenas levado em conta, mas respeitado. Não apenas respeitado, mas seguido à letra. Não apenas seguido à letra, mas obrigatoriamente seguido: como um mandamente. Será ela fundamentalista?

Umas das áreas mais con-sagradas da ciência nos últimos anos é a biologia, em particular a genética e a neurociência.Tudo parece explicável à luz da genética e da neurociência: do mais simples ao mais complexo, do mais óbvio ao mais obscuro, do normal ao patológico. Uma teoria de tudo. Será ela fundamentalista?

Segundo um estudo recente na área da genética, parece que a humanidade se divide em dois: os que pereferem o sossego e os que gostam de viajar. O que decide a pertença a um dos lados não é a história de cada um, o contexto que nos viu nascer ou formou, o modo como se reagiu subjetivamente a este ou àquele evento, como nos apropriamos desta ou daquela experiência marcante, como fomos tocados por certas palavras cujo efeito se tornou persistente, como o nosso próprio corpo já não é mais simplesmente um corpo nu, uma vida nua, mas um emaranhado complexo, uma tapeçaria onde a carne é (ab)sorvida pelos significantes primordiais que o costuram... Não, nada disso. Aquilo que decide, que determina é um gene: DRD4.

Não sei se tenho este gene, embore goste de viagens, mas tenho alguma capacidade de apreciar uma boa proposta, um bom argumento. E confesso que este tem a vantagem de ser económico: reduzir a humanidade a duas partes, segundo a presença ou a ausência de um único gene, é obra. E faria as delícias de Ockham, para quem, na explicação de um fenómeno, se deve contar apenas com o estritamente necessário! Mas, sinceramente, poderá esta explicação dizer por que viajo agora ou mais mais tarde, com esta pessoa e não com aquela, sozinho ou acompanhado, para este ou aquele lugar? Poderá ela dizer por que razão, mesmo parados, há aqueles que não param de viajar, de sentir muito e de todas as maneiras, viajando estaticamente, num permanente desassossego? Poderá ela entender até que ponto muitos daqueles que viajam não param de não sair do mesmo lugar, levando-se consigo até ao fim do mundo, sempre com os mesmos tiques? Para entender o gosto por viajar (ou não viajar) não será preciso contar, não com um gene, seja ele qual for, mas com o corpo todo, a alma toda, a vida toda?

Serei eu que não compreendo, que sou fundamentalista, ou a ciência, por vezes, se aproxima perigosamente da estupidez? Mesmo quando é movida pelas melhores intenções. Já agora, quais são as intenções de um estudo como este?

É por estas e por outras que, ao gene da explicacão genética, eu prefiro o gen(e)ial da explicação poética.

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