quarta-feira, 8 de abril de 2015

Botões de real...

Há alguns anos vi um filme que, embora sendo preferencialmente dirigido a um público infantil, acabou por me interessar deveras. Chamava-se Coraline e era baseado no livro com o mesmo nome do escritor britânico Neil Gaiman.

Resumidamente, o filme conta a história da pequena Coraline, uma menina de onze anos que se muda com a sua família, pai e mãe, para uma casa enorme. Rapidamente se aborrece, uma vez que o pai e a mãe, cada qual com seus afazeres, não ligam nenhuma à pequena. É então que ela descobre, numa das suas incursões pela casa, uma porta secreta que dá acesso a uma outra casa em tudo igual à primeira com exceção de um pequeno pormenor: nesta nova casa tudo é perfeito. Como se ela representasse o triunfo do princípio prazer frente à realidade: pais maravilhosos, que satisfazem todos os seus desejos, ante uns pais que são basicamente uns chatos e que passam o tempo a trabalhar e a resolver assuntos que nada têm a ver com ela.

Maus pais, bons pais: seria talvez demasiado fácil, mas também simplista, proceder a uma leitura «kleiniana» do filme. Para mim, desde a primeira vez que o vi, o mais significativo sempre foi a pequena mancha no quadro, algo que borra a perfeição. Com efeito, no lugar de cada olho, estas supostas figuras perfeitas, pai e mãe alternativos, têm botões. Pequeno pormenor que, não obstante, vai ganhando aos poucos uma dimensão cada vez mais perturbadora, sobretudo quando a pequena Coraline é confrontada com uma escolha: para ficar para sempre naquele mundo perfeito, como deseja, tem apenas de sacrificar uma coisa: os olhos. Ou seja: substituir os seus lindos olhos por botões. É neste momento que ela recua, sendo então capaz de ver que, afinal, aquela mãe supostamente perfeita não passa de uma bruxa má que aprisiona crianças infelizes de suas famílias, substituindo os seus olhos por botões. Em desespero, ela consegue fugir para o outro mundo, descobrindo que também os seus verdadeiros pais tinham sido entretanto aprisionados, tendo de fazer um esforço heróico, corajoso, para repor tudo no seu lugar. Clássico! Repor a ordem onde um real se mostrou demasiado perturbador. Aquilo que parecia um sonho, revela-se afinal um pesadelo de que é preciso acordar. A pequena Coraline escolhe a realidade, reconfortante, após ter sido confrontada com dois botões de real, digamos assim. A lição do filme poderia ser esta: mais vale a triste realidade do que um desejo que arrisca, no limite, fazer perder os olhos.

Achei interessante confrontar a pequena Coraline com Édipo; não o do Complexo de Édipo, pois Édipo não tinha complexos, mas o Édipo que quis saber, que não vacilou, e por isso arrancou os olhos quando descobriu a verdade. O Édipo pai de Antígona, também ela arriscando tudo para não abdicar do seu desejo. O Édipo, enfim, que já não tinha nada a perder porque tinha perdido tudo.

Mas Coraline, por seu lado, nos ensina também: de uma forma ou de outra, cada um de nós acabará confrontado, mais cedo ou mais tarde, com os seus botões de real. E terá de escolher. Não forçosamente entre perder ou não perder os olhos - é esse talvez o limite desta «clínica do olhar» - mas antes: perder ou não perder a oportunidade, quando for o caso, de falar disso que nos perturba, isto é, dos nossos botões de real.

Não foi essa a lição de Freud, ele que também não desistiu do seu desejo, por mais que se extraviasse por vezes? Não desistindo, ele inventou uma coisa nova. Chama-se a isso, ainda hoje: psicanálise. Um botão de real?

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