Tal era o meu entusiasmo que lhe enchi a cabeça. Quando nos aproximávamos do quadro de Velasquez, Las Meninas, no Museu do Prado, em Madrid, em vez de deixar que fosse o seu próprio olhar a apreender o quadro e tirar dele emoções e conclusões, eu não parava de elucubrar, de divagar. Se todo o mundo delira, como diz Lacan, ao menos que cada um possa delirar à sua maneira. Seja como for, o texto que agora partilho é fruto não só da emoção indescritível que foi para mim estar frente a este quadro de Velasquez, como de inúmeras conversas que tive oportunidade de manter posteriormente com a psicanalista brasileira Ana Paula Gomes, a quem devo um enorme sangue frio e uma grande paciência para não me mandar simplesmente calar. Por isso, a ela, que tão bem soube re-cortar ou enquadrar alguns dos meus delírios em torno deste e de muitos outros quadros, dedico este texto. Procurei limpá-lo de alguns excessos , embora se trate de um texto deliberadamente impuro, uma vez que diz respeito a uma reflexão inacabada, literalmente em devir.
Desde que vi pela primeira vez
este quadro de Velasquez, numa reprodução, ele não parou mais de obcecar-me.
Não porque o tivesse compreendido, mas antes porque alguma coisa nele objetava
à compreensão. Ele é, por isso, um dos meus quadros favoritos, um quadro a que
retorno sempre.
Há vários anos, mais exatamente
em 2000, no âmbito de um Fórum sobre Psicanálise,
Sonho e Criatividade, eu proferi uma conferência sobre este mesmo quadro de
Velasquez.[1]
Acontece que, na altura, eu estava condenado a falar de cor, baseando-me
unicamente nas reproduções que conhecia do quadro, uma vez que não tivera ainda
oportunidade de o olhar diretamente no museu do Prado onde ele se encontra
exposto.
A oportunidade surgiu agora numa recente
visita a Madrid. Penso que nunca vi tantos quadros numa única viagem. Mas foi
Velasquez quem me deteve por mais tempo, fazendo-me reparar, isto é, parar mais
demoradamente e olhar com mais com atenção. Estar ao vivo, frente àquele enorme
quadro, não se compara a nenhuma reprodução do mesmo. Há coisas que exigem, que
carecem de uma presença. Foi também o caso. Há muito tempo que um quadro não me
provocava tamanha emoção!
Posso agora compreender melhor o
entusiasmo de um outro pintor, Édouard Manet, quando, em 1865, após ter
visitado o Museu do Prado durante vários dias, escreveu ao seu amigo
Fantin-Latour, dizendo que Velasquez, por si só, justificava a viagem e que os
pintores de todas as escolas que o rodeiam e cuja obra ali está representada
pareciam meros aprendizes. Velasquez, afirmava ele, é o pintor dos pintores. O
pintor por excelência.
O quadro a que se refere Éduard
Manet é universalmente conhecido como As
Meninas, embora o título original fosse A
família do rei. Ele não só fez correr muita tinta na história da arte como,
além disso, houve pintores (caso de Picasso, por exemplo) que não cessaram de o
reproduzir ou reinventar, como se quisessem extrair dele um qualquer segredo
que teimasse em permanecer velado. Como uma obra-prima eternamente desconhecida,
é um quadro que faz falar, escrever, ao mesmo tempo que se mantém num silêncio
irredutível, obstinado. Afinal, que segredo ocultará este quadro?
Convém, talvez, começar por
descrever o cenário visível e identificar as personagens que o habitam. Vemos, ao
centro, num verdadeiro foco de luz, a infanta Margarida, que tinha apenas cinco
anos quando o quadro foi pintado, rodeada pelas damas, las meninas, o nome por que é efetivamente conhecido este quadro de
Velasquez. À nossa esquerda, tendo numa mão o pincel e na outra a paleta das
cores, o pintor dá a impressão de fixar-nos, como se fôssemos nós o tema ou o
modelo do que ele está a pintar numa tela de que vemos apenas o reverso: um
quadro dentro no quadro. À nossa direita, há uma série de outras personagens:
cortesãos, bobos da corte, um cão de olhos aparentemente fechados, parecendo
dormir. Mais ao fundo, numa mancha de luz, uma outra personagem, como que
indecisa, não sabendo nós se vai entrar ou sair: José Nieto, de seu nome,
camarista da rainha. O braço direito de José Nieto guia-nos em direção a algo
que parece um quadro, mas que não é na realidade um quadro, antes um espelho
onde se refletem duas personagens: o rei Filipe IV e a sua esposa, Mariana.
Eis as personagens e o cenário,
mergulhados ambos num extraordinário jogo de luz, sombra e perspetiva, de tal
modo que o espectador é como que arrancado do seu lugar e arrebatado para
dentro do espaço do quadro. Assim, o que está dentro ou fora, em vez de
opor-se, adquire uma estranha continuidade.
Um dos elementos que contribui
grandemente para este efeito continuidade é o olhar, o jogo de olhares que
Velasquez põe em cena neste quadro. Para onde se dirige o olhar das personagens?
Se bem que nem todas olhem na mesma direção, é como se o olhar de grande parte
delas, incluindo o do pintor, estivesse focado num mesmo ponto invisível,
algures, como diz Lacan na lição de 11 de maio de 1966, uma de várias dedicadas
a este quadro de Velasquez.[2]
Mas que ponto é esse, afinal? E está dentro ou fora do quadro?
Grande parte da análise que
Michel Foucault dedicou a este quadro, no primeiro capítulo de As Palavras e as Coisas, é orientada no
sentido de restabelecer a natureza do ponto invisível para onde convergem os
olhares.[3]
Bem no centro do quadro, ao fundo, há um espelho, onde dois vultos enevoados
parecem observar a cena. São eles, como já sabemos, o rei Filipe IV e a sua
esposa Mariana. Ora, este reflexo no espelho, relembra Foucault, restitui, como
por encanto, o que falta em cada olhar: ao do pintor, o modelo que o seu duplo
representado copia no quadro; ao do rei, o seu retrato que está a ser concluído
no lado da tela que ele não pode distinguir do lugar em que se encontra; ao do
espectador, o centro real da cena, em que ele se colocou como um intruso.
Deste modo, seguindo na esteira
de Foucault, o segredo estaria finalmente revelado: não só o direito do quadro
de que vemos apenas o reverso desvelaria a sua verdadeira natureza, como também
estaria descoberto o ponto – até agora invisível – em direção ao qual parece
convergir a maior parte dos olhares. Só que nem mesmo Foucault acredita em
tamanha generosidade. Talvez esta generosidade do espelho seja, afinal,
simulada; talvez ela oculte tanto ou mais do que manifesta. Porque, como diz
Foucault, a função do reflexo especular é a de atrair para o interior do quadro
o que lhe é intimamente estranho: o
olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desenrola.[4]
Significa isto que, ao mesmo tempo que exibe, que dá a ver, este quadro indica
em todas as partes um vazio essencial.[5]
Como diz Lacan no seminário XVII, lição de 11 fevereiro 1970, «são sempre as
coisas mais visíveis, as que se expõem, que vemos menos».[6]
Isto quer dizer que no mais
íntimo do quadro, como diz Lacan num outro lugar, não encontramos uma coisa em
si, uma substância, mas um olhar; um olhar que, no dizer de Foucault, ficaria
estruturalmente elidido: neste caso, o olhar do pintor, que organizou o quadro,
o olhar do rei, para quem ele se desenrola, e, naturalmente, o olhar do
espectador que, olhando, não vê. Ou melhor: ele vê sem ver, como na carta roubada de Poe. O quadro dentro do
quadro, de que vemos apenas o reverso, tem a função de barrar, de cavar um
buraco entre o olho daquele que vê e
o olhar que lhe escapa. Ao fundo do
espelho, no centro do quadro, o olhar do rei e da rainha, unindo interior e
exterior a partir de um ponto invisível, vem, não obstante, organizar todo o
espaço do visível. E é dessa maneira que esse visível assenta numa
invisibilidade essencial. O quadro virado do avesso, o quadro dentro do quadro,
está lá para assinalar uma tal invisibilidade. Ele é a própria revelação do
olhar, mas na medida em que este, para que o quadro se constitua como tal, tem
de permanecer invisível, excluído.
Mas não é precisamente aqui que
reside o paradoxo? Não implicará este quadro, tal como o gesto que o organiza,
uma certa obscenidade, na medida em que dá a ver, isto é, põe em cena, algo que
deveria normalmente permanecer-lhe exterior e invisível, isto é, fora de cena?[7]
É verdade que Velasquez parece
servir-se deste quadro como uma espécie de alavanca, de «escabelo», isto é, de
algo que o eleva à dignidade – que ele realmente tinha – de ser o pintor-mor do
reino: o pintor dos pintores, como dizia Manet.[8]
Dar-se a ver no próprio quadro que pinta parece um gesto indubitavelmente
narcísico. Contudo, ao mesmo tempo, o pintor mantém, inerente ao que dá a ver, ao
que é possível de ver no quadro, um ponto de invisibilidade. Aquilo que parece
ser um mero jogo de reflexos, encaixando finalmente uns nos outros, acaba por girar
em torno de um ponto cego, de um impossível de ver. Este quadro de Velasquez é,
finalmente, a sublime materialização de um paradoxo, um oximoro vivo, incarnado. Ao trazer para dentro do quadro o que lhe
é exterior, Velasquez produz ao mesmo tempo um espaço êxtimo, como diria Lacan. Ou seja: um exterior na sua própria interioridade,
um invisível na sua própria visibilidade. Não só um quadro dentro do quadro,
mas igualmente um fora dentro do dentro. Uma coisa louca?
***
Seja como for, por meio do seu
gesto, da subversão a que submete o quadro, Velasquez faz com que este perca,
por assim dizer, a sua inocência, passando a ser um objeto de interrogação: o
que é afinal um quadro?
Um quadro é um recorte, uma
janela enquadrando algo: um rosto, um corpo, uma paisagem, objetos diversos,
enfim. Ele marca um limite: entre o que está dentro e o que está fora, um
interior e um exterior. Se o quadro de Velasquez, como vimos, subverte os
limites entre o interior e o exterior, por exemplo, ele não anula apesar de
tudo a ideia de quadro. Simplesmente, inaugura uma nova era autorreflexiva,
digamos assim, em que o artista se interroga sobre as condições de
possibilidade de um quadro. É o momento em que o quadro, em vez de ser apenas
uma janela aberta para o real ou um espelho refletindo mimeticamente o
espetáculo do mundo, se contorce ou volta para si mesmo, apercebendo-se como
quadro. Nessa medida, é um gesto bem kantiano avant la lettre: um gesto crítico. Muito mais tarde, Magritte, por
exemplo, não fará outra coisa senão repetir, embora em moldes diferentes, este mesmo
gesto crítico, em particular na série A
condição humana.
Desse ponto de vista, o gesto de
Velasquez antecipa muita da arte posterior, inclusivamente a arte abstrata, em
que o quadro é submetido às mais diversas interrogações, depurações, deformações,
fragmentações, embora permanecendo como referência enquanto quadro. Mesmo
quando Malevitch, por exemplo, no seu famoso Quadrado negro, parece querer apagar todo o imaginário por meio de
um gesto iconoclasta, ainda assim ele mantém o quadro como referência, se bem
que a partir dele se proponha gerar toda uma série de outras figuras. De
Velasquez a Malevitch, praticamente tudo mudou, exceto isto: a arte permanece
enquadrada, isto é, ligada ao quadro de um modo ou de outro.
Pois bem, houve uma ideia que me
assaltou ao ver de novo o quadro de Velasquez, no Museu do Prado, juntamente
com um sem número de outros quadros. Após ter percorrido inúmeras salas de três
grandes museus de Madrid (Prado, Reina Sofia, Thyssen), saí com esta ideia,
porventura louca, na cabeça: o quadro já não é a nossa referência, muito menos
exclusiva. As Meninas de Velasquez
assinalam um ponto culminante, sem dúvida, em que a pintura se volta para si
mesma, interrogando-se como quadro, mas, ao mesmo tempo, iniciam um processo de
declínio que só progressivamente evidencia toda a sua amplitude: o quadro vai perdendo
o estatuto de referência. Cada vez mais, as artes se realizam fora do quadro,
sem referência ao quadro, ou então referindo-se a ele apenas como um «momento»
de um processo, de um ato que de modo algum se esgota ou limita a ele.[9]
Um bom exemplo poderia ser o
trabalho de Carl Andre, escultor e poeta norte-americano, atualmente com uma
exposição no Museu Velasquez, a qual tive igualmente oportunidade de ver, e
cujo título é já indicativo daquilo que está em causa: «A escultura como
lugar». Trata-se de uma instalação a partir de materiais industrialmente
produzidos e alinhados de uma certa maneira, geométrica e em série, no espaço
do museu. Neste caso, portanto, o espaço – em particular o chão - substitui o
quadro. Não só o espaço que suporta a instalação, mas também o espaço criado
por ela, pois dispor um conjunto objetos num espaço é também uma forma de o
(re) criar, de produzir espaço, isto é, lugar(es).
Se é verdade que o quadro de
Velasquez constitui uma verdadeira revolução copernicana, no sentido kantiano do termo, ao mesmo tempo ele
conserva aquilo que poderíamos designar como um centramento, um enquadramento
em torno de um centro: ponto de fuga ou de convergência dos olhares. Quando a
arte dá um passo mais em direção ao desenquadramento,
para servir-me de um termo de Pascal Bonitzer, é a própria ideia de centro que
se perde. Como dizia este autor há alguns anos, «o desenquadramento significa
que…no centro do quadro, em princípio ocupado na representação clássica por uma
presença simbólica (a imagens dos soberanos no espelho das Meninas, por exemplo), não há nada, não se passa nada. O olho
habituado (educado?) a centrar imediatamente, a ir ao centro, não encontra nada
e reflui para a periferia, onde alguma coisa palpita ainda, prestes a
desaparecer.»[10]
É verdade que muita da arte que
se faz atualmente continua a ter o quadro como referência. É igualmente verdade
que, mesmo ao falar de desenquadramento,
a referência ao quadro não se perde, antes se subverte. Mas o que dizer de uma
arte onde a instalação, o espaço, a performance, a body art, isto é, as diversas intervenções do corpo e sobre o corpo
(pensemos, por exemplo, no caso de ORLAN, a artista francesa que utiliza o seu
próprio corpo como objeto de uma permanente metamorfose cirúrgica e estética)
ou as mais diversas realizações ou gestos artísticos que não parecem mais enquadráveis,
passíveis de integrar ou reduzir a um quadro prévio? De tal modo que poderíamos
questionar se não estamos aqui perante um real a céu aberto, sem uma moldura
simbólica que o possa enquadrar ou limitar. Não implicará este fenómeno um
certo efeito psicotizante na arte
contemporânea? E não digo necessariamente psicótico. Uma coisa louca?
Se é verdade, como dizia Lacan em
1965, que o artista sempre precede o psicanalista,[11]
um tal estado da arte deve ter algo a dizer, a ensinar à psicanálise. Em
particular isto: que saímos da era do pai (representado no quadro de Velasquez não
só pelo rei Filipe IV, mas também por um certo modo de centrar o olhar
relativamente a um ponto privilegiado). As
Meninas constituem um momento culminante na medida em que revelam, em todo
o seu esplendor, a fantasia fundamental de uma época (e não só de um artista em
particular): o mundo ordenado em torno de um quadro, um quadro em torno de um
centro, um centro ocupado por uma realeza que, unindo moebianamente o que está fora e o que está dentro do quadro, institui
ou restaura a ordem e a continuidade do todo. Rompida esta ordem paterna, é o real que invade a cena, que
devém, agora sim, obsceno, quase pornográfico. A arte já não é apenas – ou sobretudo
– exposição de um quadro fantasmático, como acontecia outrora, mas alguma coisa
de ordem sintomática. Um sintoma mais do que um fantasma: tanto porque faz
sintoma (pensemos no mal-estar que provocam inúmeras manifestações artísticas
contemporâneas), como porque serve de sinthoma,
como diria Lacan, escrito assim, na medida em que é um modo de lidar, de fazer
face, de se haver com um real sem lei (paterna) e sem um enquadramento ou
moldura prévios.
Se este novo estado da arte não pode deixar de interessar
ao psicanalista é porque também ele, cada vez mais, tem de lidar com sujeitos
que, de um modo ou de outro, estão desenquadrados. Que novos recortes são possíveis,
sem um quadro prévio ou genérico, universalmente válido, a priori, é uma questão a responder no caso a caso, no um por um. Pois,
a cada um o seu sinthoma, isto é, a
sua coisa louca, mas também o seu
modo de invenção.
[1]
Auditório da Escola Superior de Bragança, 1 de Julho de 2000.
[2] LACAN, Jacques (1965-1966), Le Séminaire, Livre XIII, L’objet de la psychanalyse (inédito).
[3]
Cf. FOUCAULT, Michel, As Palavras e as
Coisas. Lisboa: Edições 70, 1988, pp. 59-71.
[4]
Cf. Ibid., p. 70.
[5] Ibid., p. 71.
[6] Cf. LACAN, Jacques (1969-1970), Le Séminaire, Livre XVII, L’envers de la psychanalyse. Paris.
Édition du Seuil, 1991, p. 85.
[7] Cf. Cf. COETZEE, J.M., Elisabeth Costello. Lisboa: Dom
Quixote, 2004, p. 167.
[8]
Sirvo-me aqui do termo «Escabelo» (S.K.beau)
que Lacan forjou para dar conta do caso de Joyce e que Jacques-Alain Miller retomou
no texto L’inconscient et le corps
parlant. Disponível na web: http://www.wapol.org/fr/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=5&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=5
(consultado em 16-06-2015).
[9]
Cf., por exemplo, Harold Rosenberg, citado por Denys Riout, Qu’est-ce que l’art moderne, Paris:
Gallimard, 2014, p. 94.
[10]
BONITZER, Pascal, Décadrages – Pinture et
Cinéma. Paris: Éditions de
l’étoile (Seuil), p. 84.
[11]
LACAN, Jacques, «Homenagem a Marguerite Duras», Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989,
p. 125.
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