terça-feira, 8 de abril de 2014

Distância cínica

Nas suas análises da ideologia contemporânea, o filósofo esloveno Slavoj Zizek usa por vezes a expressão «distância cínica». O que é a distância cínica? Sucintamente eu diria: é uma certa atitude do sujeito (da enunciação) para com um enunciado, geralmente produzido por um Outro, mas não necessariamente. Ou seja: é a «distância» que permite ao sujeito manter-se numa zona tranquila,  confortável, ou, como se diz também, na sua zona de conforto, perante um Outro invasivo, incómodo ou, simplesmente, chato

Sem entrar em grandes e «chatas" elucubrações sobre o assunto, perguntei-me se não haveria no linguajar quotidiano um enunciado que ilustrasse bem a distância subjetiva de que falo. E julgo ter encontrado. Ei-lo: Tou nem aí!


(Es)tar nem aí já é toda uma filosofia...da gramática. Aliás, estar ou não estar não é dado a todos os falantes; os franceses ou ingleses, por exemplo, estão condenados a ser ou não ser (être ou n'être pas, to be or not to be). Se Hamlet, por exemplo, fosse uma criação portuguesa, ele teria dito: Estar ou não estar...aí. E tudo seria diferente! Até o filófoso alemão, Martin Heidegger, teve de inventar um «Ser-aí» (Da-Sein) porque não tinha à mão o verbo "Estar". Estar ou não estar aí? O homem é aquele animal que está nem aí.

A lógica tradicional diz-nos que não é possível estar e não estar ao mesmo tempo e sob o mesmo aspeto; portanto, a expressão, tou nem aí desafia a lógica tradicional. Aliás, o que tem a lógica tradicional a dizer-nos sobre um mundo, como o nosso, que é tão estranho e paradoxal? Não se trata apenas de estar ou não estar, pois há uma distância entre ambos que se cava e subverte tudo:nem.

A expressão completa deveria ser: Não estou nem aí. Uma dupla negação que, na verdade, significa: não quero saber nada disso (versão neurótica) ou estou-me nas tintas para isso aí (versão cínica).

Sigmund Freud, escreveu um artigo muito interessante sobre estas questões e a que chamou, em alemão, Die Verneinung: A (de)negação. Foi a sua maneira de falar de um sujeito que se distancia dos seus enunciados. Como no exemplo de alguém que adverte: «Não pense que agora vou dizer algo para ofendê-lo!» Mas por que diabo alguém teria pensado tal coisa a não ser o próprio sujeito que adverte? Um sujeito que afirma e nega ao mesmo tempo, que está e não está aí simultaneamente.

Graças a quê? Àquilo que Lacan desenvolve até à exaustão ao longo do Seminário VI, O Desejo e a sua Interpretação. A saber: a relação do sujeito com o significante. É este, no fim de contas, que cava uma distância irremediável entre si e si mesmo, entre si e as coisas, entre si e os enunciados que profere ou são proferidos. Mas, ainda que isto seja uma razão necessária, será ela suficiente para justificar a «distância cínica» que se instalou entretanto no mundo como um fenómeno viral, como agora se diz?

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