segunda-feira, 27 de julho de 2015

Uma lição...

Entramos no Táxi. Quem nos conduz é o realizador iraniano Jafar Panahi. O filme vai-nos envolvendo como quem não quer a coisa. Como acontece aos demais que vão entrando no Táxi, não é claro para nós onde acaba a ficção e começa a realidade, de tal modo elas se entrelaçam uma na outra. Um dos reconhecidos méritos do filme, vencedor do Urso de Ouro em Berlim, é precisamente esse.  Mesmo quando a realidade é sórdida, para falarmos dela, para a mostrar como convém, é preciso um desvio pela ficção. Eis uma primeira nota a reter: se toda a verdade é mentirosa, como diria Lacan, há que usar de uma certa mentira - e o cinema também é isso - para acercar-se de um real que não mente, para acostar a ele o mais possível, mas sem embater ou despedaçar-se na rocha.

A certa altura do filme, um jovem estudante de cinema, dirigindo-se ao mestre, confessa estar embaraçado com o tema para um filme que tem de realizar no final de curso. Já leu todos os livros, já viu todos os filmes, mas a coisa não sai. Espera que alguém o ajude, alguém que lhe dê uma fórmula, uma receita. Alguém mais experiente, que já tenha dado provas. Um Outro suposto saber o que fazer onde o sujeito encalha. Pois bem, o que responde o «condutor» de Táxi, o próprio Jafar Panahi? Mais ou menos isto, e cito de cor: se já leste todos os livros e viste todos os filmes, agora é contigo. NINGUÉM TE PODE AJUDAR.

Estamos em Teerão e o próprio realizador tem sobre ele o peso de uma condenação: não pode realizar filmes durante vinte anos desde que foi preso em 2010 e proibido de trabalhar ou viajar por alegadamente fazer filmes contra o regime. Numa primeira leitura, por conseguinte, é como se ele respondesse ao jovem aspirante a realizador: AQUI NINGUÉM TE PODE AJUDAR. Ou segues as regras impostas pelo regime para a realização de filmes, fazendo um filme que seja «distribuível», ou ninguém o quererá ver, mais do que isso, nem sequer te permitirão fazê-lo. Neste caso, a resposta é a mera constatação de um estado de coisas: repara em mim, a quem te diriges! Nem mesmo eu te posso ajudar, uma vez que estou igualmente sujeito à regra que diz o que posso e não posso fazer.

Mas há uma outra leitura mais abrangente, mais interessante, a meu ver, e que não se limita à situação concreta de um estado de coisas, de um regime: ninguém te pode ajudar a encontrar a tua solução porque nenhum Outro a detém. Ninguém a conhece. Ela não foi ainda inventada. Podes ler todos os livros que foram escritos, ver todos os filmes que foram realizados até agora, mas sobre a vida que tens de viver ou o filme que deves fazer, desde que não te limites simplesmente a copiar a fórmula já experimentada, ninguém te pode ajudar. O Outro, suposto saber o que diz, o que deves ou não deves fazer, não existe. Ou então, quando existe, isto é, quando alguém, um regime por exemplo, se faz passar pelo Outro, ditando as regras de viver, de fazer filmes, é pior. Tudo se torna uma imensa prisão a céu aberto, no exterior, e não só dentro das prisões efetivas. É por isso que alguns, como ironizava a certa altura uma advogada, amiga de Jafar Panahi, preferem voltar para dentro da prisão mesmo quando são posto cá fora.

Contudo, gostava de propor ainda uma outra leitura da frase: ninguém te pode ajudar significa, revertendo o seu endereçamento, que ninguém me pode ajudar. Ninguém me pode ajudar, a mim, Jafar Panahi; terei de ser eu, com os meus recursos, o meu saber, o meu amor pelo cinema, a minha perseverança em não ceder no meu desejo frente às imposições da autoridade política e religiosa, a encontrar uma solução. «Taxi» é o nome da solução encontrada por Jafar Panahi: proibido de «conduzir» filmes mas não de conduzir um táxi, ele aproveita a lacuna, o não escrito na lei, para vestir o «semblant» de taxista, acoplar uma câmara de vídeo no para-brisas do táxi e conduzir-nos através das ruas de Teerão enquanto vai conversando com diversas pessoas que entram e saem do táxi.

Uma lição de cinema. Uma lição de vida.

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