quinta-feira, 23 de julho de 2015

Dois textos com voz própria

Ana Paula Gomes é psicanalista da Escola Lacaniana de Psicanálise - RJ. Um dos seus temas de eleição é a travessia e o fim de uma análise: o que acontece ao sujeito, e nomeadamente a homens e mulheres, durante e no final da mesma? Os dois textos que agora tive a oportunidade de reler confirmam esta temática. Mais concretamente, o primeiro deles, Uma psicanálise, o que é isso?, tem por objetivo pensar a relação do sujeito com o Outro e, ao mesmo tempo, o que ocorre, ou se altera, na sua relação com o Supereu no final de uma análise; o segundo, Do impasse freudiano ao passe lacaniano, visa responder à questão de como se dá a passagem da falta fálica à causa do desejo, numa análise, para além do rochedo da castração; limite a que Freud parecia condenar ambos os sexos e que Lacan pretendeu superar.

A primeira nota de leitura que ressaltou para mim foi o «tom», digamos, a voz que sustenta a enunciação presente em cada um dos textos. E é interessante o modo como isto se prende com a pergunta feita por Ana Paula Gomes no primeiro deles,: «Ao final de uma análise, qual a relação do sujeito com a sua própria voz», uma voz finalmente «descolada» do seu «tom» superegoico? Eu diria que a resposta já está contida na pergunta, melhor ainda, no próprio texto. A autora responde em ato, por meio de um estilo singular, à pergunta que formula no final do mesmo. Um estilo é não só o advento como a apropriação de uma voz: não só o modo como a autora vai entrelaçando considerações de ordem mais teórica (colhidas tanto em Freud como em Lacan) com exemplos clínicos, como a forma leve e solta, se bem que rigorosa, de temperar o dizer com laivos de poesia ou referências cinéfilas, como é o caso em particular do diretor espanhol Pedro Almodóvar e, nomeadamente, o filme A pele que habito (2011).

Muito haveria a dizer sobre cada um dos textos. Mas um  texto não é algo para se fechar de uma vez para sempre. Um texto é para ler, mas sobretudo para reler. Cada leitura é um certo recorte da letra. O mais interessante - e porventura menos evidente para o senso comum - é que uma psicanálise é também uma leitura. Uma leitura do que foi «inscrito e escrito» pelo Outro no sujeito e que o determina e condiciona. Será possível, desse «texto alheio», inscrito no corpo e na mente pelas determinações inconscientes, extrair uma voz própria? Para que tal aconteça, é preciso, por exemplo, que naquele lugar em que se demandava amor - um amor que tanto pode ser a mola de uma análise como o seu maior obstáculo - o sujeito consiga fazer «causa de desejo». Lacan dizia que o amor é o que permite ao gozo (por exemplo o gozo do sintoma) condescender ao desejo. Este é o seu lado operante, digamos, mas o amor pode ser também um muro ou um «rosário de lamentações» para o sujeito: um modo de este se esquivar do impossível de escrever na relação entre os sexos. Em vez de fazer desse impossível causa, o sujeito detém-se à beira do que Freud chamava: «rocha da castração». Se no meio do caminho, como diria o poeta, tinha uma pedra, no fim do caminho, segundo Freud, tem uma rocha. Será possível ir além dessa rocha como pretendia Lacan?

Numa passagem ao mesmo tempo rigorosa, acutilante e extremamente bela, na medida em que o belo é fruto de um bem-dizer que bordeja o real, Ana Paula Gomes, no segundo texto, dá-nos uma resposta: «...se trata, na travessia de uma análise, de fazer operar a castração, de forma que uma certa margem de liberdade opere, permitindo ao sujeito fazer, do amor necessário que recebeu em sua constituição, algo menos repetitivo, menos sintomático. "O amor precisa da sorte, de um trato certo com o tempo", canta o poeta. O tempo é castração, e o amor, a tentativa de obturá-lo. Aceitar o trato com o tempo fala da contingência do amor. É a inclusão do impossível do real no possível do amor.»

É esta a resposta inteira, a única resposta? Nem por isso. Não só porque não há A resposta, como não há A mulher ou A relação - é disso que há um luto a fazer - mas tão só cada um  «tendo de suportar um real que o nome porta mas não designa». Autor-i-zar-se a trans-portar esse real, para além dos impasses imaginários, não será uma condição indispensável para que possa advir, como diria Rimbaud, um novo amor? Um amor menos repetitivo, nas suas lamentações, e mais inventivo, isto é, que consiga «fazer outra coisa com este ponto limite do real»?

Ana Paula Gomes. «Uma psicanálise, o que é isso»; «Do impasse freudiano ao passe lacaniano: da falta fálica à causa do desejo». in Os dispositivos de verificação do passe. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2013, pp. 99-104 e 161-166.

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