domingo, 5 de julho de 2015

Um pan-demónio...

O demónio está por todo o lado. A vitória do não no referendo grego gerou um pandemónio.

Lembrei-me de uma pequena história de Gonçalo M. Tavares: Kashine e o não. É a história de um rapaz de dezasseis anos que, certo dia, sem nenhuma razão aparente, decidiu fazer isto: espalhar o não por onde passasse. Este não, espalhado pela cidade e por diversos documentos  pelo jovem adolescente, provocou inúmeros distúrbios. Numa nota de comentário, Gonçalo M. Tavares explica como Kashine, munido apenas de três letras do alfabeto, introduz o caos, de certa forma a maldade: «Pan-demónio, pan - o demónio em todo o lado, como nas carteiras das senhoras, carteiras que estão num pandemónio; eis o mundo e eis um texto: bastando acrescentar um não, onde antes estava o sim, para dar início ao inferno, ao desassossego.»

É também sobre o poder de um simples não como fonte de distúrbio que fala o livro de Saramago: História do Cerco de Lisboa. Ao contrário do que poderia pensar-se, não se trata aqui de um romance histórico, mas antes da história de um revisor de texto, um «conservador», alguém que tem a obrigação de respeitar o que encontra escrito, a letra, portanto, mas que decide introduzir uma palavra que nega o que de facto é uma verdade histórica, verdade manifesta no livro que está a rever e que tem como título «História do Cerco de Lisboa». Onde se lia que os Cruzados ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa, o nosso homem decide pôr um não: «os cruzados não ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa».

Em ambos os casos, o não gera desordem porque nega o que está escrito ou parece evidente. Mas há, porventura, um não ainda mais subtil, um não que é na verdade um sim. Trata-se, neste caso, de uma negação de outro tipo, uma (de)negação, como lhe chama Freud num célebre artigo de 1925. Quando alguém, por exemplo, no decurso de uma análise, afirma: «Agora vai pensar que eu vou dizer algo de ofensivo, mas não tenho essa intenção», como ler neste caso o não? O raciocínio de Freud é simples: quem haveria de pensar, entre tantas possibilidades, senão o próprio sujeito, em dizer algo de ofensivo? Tal significa que o não funciona aqui como uma última barreira, uma defesa in extremis, de um sim prestes a afirmar-se.

Portanto - é a minha conclusão, evidentemente discutível, a discutir - o não e o sim não vivem apenas de costas voltadas, como duas faces que jamais se encaram, mas mantêm entre si intrincados elos. Nem sempre um não é um puro e simples não ou um sim um puro sim.

O que queriam dizer, por exemplo, os burocratas europeus quando apelaram, de forma intransigente, ao sim no refendo grego, como se a vitória do não fosse um verdadeiro e definitivo pandemónio? Não seria razoável ler, como na estratégia «perversa», um «mas»? Sim, mas...

E como ler, por outro lado, a expressiva vitória do não?  Tratar-se-á de um autêntico desejo de outra coisa, uma coisa que ninguém sabe bem ainda o que é, ou apenas de um desejo claramente «neurótico», isto é, uma forma de encostar o Outro (europeu) à parede, obrigando-o a responder à pergunta: até que ponto estás disposto a perder-me, a deixar-me sair (do euro), a ir embora...? 

Sem comentários:

Enviar um comentário