Tratou-se de ler o Seminário
XVII, de Jacques Lacan, ao pé da letra. Foi um trabalho vagaroso, mas
produtivo. Mais do que chegar ao fim, saltando por cima das arestas, apostou-se
no esmiuçamento, no comentário miúdo, de pormenor. Para combater os efeitos
imaginários de grupo, a mera colagem a um sujeito-suposto-saber ler ou a
passividade e inércia que tendem por vezes a instalar-se, foi pedido a cada um
que fizesse um esforço para dizer, para dar conta daquilo, pouco ou muito, que passou
para ele da leitura que fizemos deste seminário, elaborando, a cada sessão, um
«relatório» da mesma. Aqui fica o exemplo da sessão de trinta de julho de 2015.
Chegados aqui, após um ano de
leitura do Seminário XVII, poderíamos reduzir a coisa ao seu esqueleto: em cima, em baixo, à esquerda, à direita (p.
106). É um quaternário. Mas não se
trata, neste caso, do quaternário heideggeriano (o céu e a terra, os divinos e
os mortais) ou até da conhecida divisão política entre direita e esquerda,
mesmo se o político não está de modo algum excluído deste seminário, antes pelo
contrário.
Para entrar no ensino de Lacan,
poderíamos dizer, há um mínimo: é preciso saber contar até quatro. É uma
aritmética simples. Com efeito, não basta a mãe (quer esta seja boa ou má), o
pai (brando ou severo, presente ou ausente) ou mesmo a triangulação edipiana tão cara a Freud. Não só neste
seminário, onde isso é dito explicitamente, mas desde o início do ensino de
Lacan que se trata de ir «além de Freud». Não pondo-o simplesmente de lado, mas
formalizando os seus termos. É o caso, por exemplo, da metáfora paterna: uma estrutura quaternária. Mais tarde – abreviando
- quando Lacan, após ter sido «excomungado», como diz, propõe os «quatro
conceitos fundamentais», de novo estamos perante uma estrutura quaternária: o
inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. O seminário XVII não
foge à regra, ao propor os «quatro discursos»: do mestre, da histérica, da
universidade e do analista. Mais tarde, no seminário XX, trata-se igualmente de
jogar com a estrutura quaternária, desta vez traduzida nas «fórmulas quânticas
da sexuação», como diferentes modalidades, do lado «homem» e do lado «mulher»,
de responder à inexistência de uma «relação» formalizável entre os sexos.
Finalmente, concluindo este breve resumo, não é também desse quaternário que se
trata quando Lacan propõe, no seminário XXIII, o sinthoma, isto é, um «nó a quatro»?
No caso do seminário XVII
poderíamos levar esta ideia ainda mais longe – uma ideia quase «fractal», como
se diz nas matemáticas, onde a mesma «estrutura» se repete em escalas
diferentes: quatro discursos, cada discurso composto por quatro lugares, cada lugar ocupado – ou sendo ocupável – por quatro elementos
(S1, o significante-mestre; S2, o saber; a,
o mais-de-gozar: $, o sujeito) e quatro giros ou modos de rotação.
Para entender o termo «discurso»
em Lacan, importa começar por descartar o que ele não é: a palavra proferida
por um sujeito. Não que isso não tenha o seu lugar num discurso, mas antes
porque, consoante o discurso em causa, o lugar de onde se fala ou é falado, os
significantes que se usa ou que determinam o que é dito, a verdade que sustenta
a fala (ou o silêncio), aquilo que se produz, o (mais de) gozo que se extrai, não
são o mesmo. É por isso que importa saber o que age, isto é, o que é
«determinante» num discurso. É nessa medida, por exemplo, tal como diz o título
deste seminário, que o discurso do mestre é o «avesso» da psicanálise, do
discurso do psicanalista. Que este possa descambar para uma certa confusão com
o discurso do mestre ou da histérica, em particular quando as areias movediças
da política fazem resvalar o pé, é algo para o qual Lacan nos chama a atenção
neste seminário. Ainda assim, desde que bem orientados pelo discurso do
analista, tanto o discurso do mestre como o discurso da histérica nos ajudam,
porventura, a situar melhor o que está em causa na política.
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