sexta-feira, 31 de julho de 2015

Para ler lacan...



Tratou-se de ler o Seminário XVII, de Jacques Lacan, ao pé da letra. Foi um trabalho vagaroso, mas produtivo. Mais do que chegar ao fim, saltando por cima das arestas, apostou-se no esmiuçamento, no comentário miúdo, de pormenor. Para combater os efeitos imaginários de grupo, a mera colagem a um sujeito-suposto-saber ler ou a passividade e inércia que tendem por vezes a instalar-se, foi pedido a cada um que fizesse um esforço para dizer, para dar conta daquilo, pouco ou muito, que passou para ele da leitura que fizemos deste seminário, elaborando, a cada sessão, um «relatório» da mesma. Aqui fica o exemplo da sessão de trinta de julho de 2015.

Chegados aqui, após um ano de leitura do Seminário XVII, poderíamos reduzir a coisa ao seu esqueleto: em cima, em baixo, à esquerda, à direita (p. 106). É um quaternário. Mas não se trata, neste caso, do quaternário heideggeriano (o céu e a terra, os divinos e os mortais) ou até da conhecida divisão política entre direita e esquerda, mesmo se o político não está de modo algum excluído deste seminário, antes pelo contrário.
Para entrar no ensino de Lacan, poderíamos dizer, há um mínimo: é preciso saber contar até quatro. É uma aritmética simples. Com efeito, não basta a mãe (quer esta seja boa ou má), o pai (brando ou severo, presente ou ausente) ou mesmo a triangulação edipiana tão cara a Freud. Não só neste seminário, onde isso é dito explicitamente, mas desde o início do ensino de Lacan que se trata de ir «além de Freud». Não pondo-o simplesmente de lado, mas formalizando os seus termos. É o caso, por exemplo, da metáfora paterna: uma estrutura quaternária. Mais tarde – abreviando - quando Lacan, após ter sido «excomungado», como diz, propõe os «quatro conceitos fundamentais», de novo estamos perante uma estrutura quaternária: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. O seminário XVII não foge à regra, ao propor os «quatro discursos»: do mestre, da histérica, da universidade e do analista. Mais tarde, no seminário XX, trata-se igualmente de jogar com a estrutura quaternária, desta vez traduzida nas «fórmulas quânticas da sexuação», como diferentes modalidades, do lado «homem» e do lado «mulher», de responder à inexistência de uma «relação» formalizável entre os sexos. Finalmente, concluindo este breve resumo, não é também desse quaternário que se trata quando Lacan propõe, no seminário XXIII, o sinthoma, isto é, um «nó a quatro»?
No caso do seminário XVII poderíamos levar esta ideia ainda mais longe – uma ideia quase «fractal», como se diz nas matemáticas, onde a mesma «estrutura» se repete em escalas diferentes: quatro discursos, cada discurso composto por quatro lugares, cada lugar ocupado – ou sendo ocupável – por quatro elementos (S1, o significante-mestre; S2, o saber; a, o mais-de-gozar: $, o sujeito) e quatro giros ou modos de rotação.
Para entender o termo «discurso» em Lacan, importa começar por descartar o que ele não é: a palavra proferida por um sujeito. Não que isso não tenha o seu lugar num discurso, mas antes porque, consoante o discurso em causa, o lugar de onde se fala ou é falado, os significantes que se usa ou que determinam o que é dito, a verdade que sustenta a fala (ou o silêncio), aquilo que se produz, o (mais de) gozo que se extrai, não são o mesmo. É por isso que importa saber o que age, isto é, o que é «determinante» num discurso. É nessa medida, por exemplo, tal como diz o título deste seminário, que o discurso do mestre é o «avesso» da psicanálise, do discurso do psicanalista. Que este possa descambar para uma certa confusão com o discurso do mestre ou da histérica, em particular quando as areias movediças da política fazem resvalar o pé, é algo para o qual Lacan nos chama a atenção neste seminário. Ainda assim, desde que bem orientados pelo discurso do analista, tanto o discurso do mestre como o discurso da histérica nos ajudam, porventura, a situar melhor o que está em causa na  política.

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