terça-feira, 2 de setembro de 2014

Que coisa era aquela?

Sempre me irritou um pouco a frase: «uma imagem diz mais do que mil palavras». Mesmo se vivemos na era da imagem, afogados em imagens, não tenho a certeza de que estas digam mais. Pode até acontecer que digam menos, que nos deixem sem palavras, sem uma palavra que as possa resgatar do silêncio (por excesso ou defeito) que elas causam em nós. Muitas vezes perguntei ao meu filho, por exemplo, após um banho de imagens a que ele mesmo se sujeitara (vendo filmes, jogando jogos...) o que poderia dizer sobre aquilo e...nada. Não lhe ocorria nada. Aquele imenso caudal de imagens deixara-o seco de palavras. Uma imagem mostra, quando muito, mas não diz. E onde a palavra não ocorre, é a pura violência das imagens que toma o lugar.

Tive ocasião recentemente, em Budapeste, de confrontrar-me com este paradoxo: uma imagem que mostra, que revela algo, mas não diz. Por mais que olhemos, ela pemanece muda. À beira do Danúbio, um conjunto de sapatos fazendo série, deixando-nos sérios. O que era aquilo? Que coisa era aquela? Por que razão estavam ali, abandonados, aqueles sapatos? Eu não precisava de sapatos, por isso não me ocorreu o lado utilitário da coisa. Mas tudo o que o saber não alcança, a imaginação preenche. Inventa hipóteses. Delira. Se aquilo que a imagem mostra não diz, se ficarmos desamparados, órfãos de sentido, a imaginação vem em nosso socorro. Mesmo se não apazigua, pois sabemos que é apenas a tentativa de circunscrever um buraco, de o rodear.


À partida, no instante de olhar, aquilo eram apenas sapatos. Recordei-me, inclusivamente, do filme/documentário: «A Ponte» (The Bridge). Restos suicidas que ficam de quem se vai? Memórias de passagens ao ato? Muitas perguntas me ocorriam e nenhuma resposta. Depois, aproximei-me, buscando compreender melhor. Olhei demoradamente, fotografei. Vi de mais perto. Toquei com as mãos, sem medo de sujar-me. De repente, uma luz. Afinal, aqueles sapatos não eram sapatos. Ou melhor: eram sapatos metálicos, presos ao chão. Seria uma escultura? Uma instalação artística? Incrições metálicas de uma memória? Mas que memória? Talvez a memória dos suicídas que se lançaram da margem, que se deixaram cair desamparadamente no rio. Mas porque haveriam eles de deixar para trás os sapatos? É certo que não precisariam deles, mas, ainda assim, porquê dar-se ao trabalho de os tirar? E se, em vez de se deixarem cair ao rio, eles fossem antes empurrados, forçados a atirar-se? Ou então, mais cruamente ainda, abatidos a tiro, como aconteceu aos judeus de Budapeste, vítimas do terror do movimento fascista húngaro, assassinados a tiro diretamente para o rio entre 1944 e 1945? 

Na verdade, aquilo que se vê é um memorial, o que resta de uma memória: letras petrificados de um real insensato e inumano, de uma violência extrema que se abateu sobre os corpos que faltam naqueles sapatos.Uma violência que aquelas imagens não dizem, porventura não mostram, mas que convoca uma palavra. Para que, do horror que se abateu sobre aqueles corpos, aquelas vidas, reste algo em vez nada. Contra todos aqueles que pretendem reduzir o horror a um silêncio de morte mesmo quando o revestem de uma profusão de imagens.

Em Budapeste há uma bela e grandiosa sinagoga, a segunda  maior da Europa, salvo erro. Mas onde eu fui verdadeiramente a-tingido, convocado por algo, não foi aí. Nem o terem-me obrigado a usar a Kippa e eu tê-la perdido me fez problema. Onde eu me senti verdadeiramente convocado a depor uma palavra - como quem depõe um ramo de flores - foi ali: à beira do Danúbio, perante aqueles sapatos que não diziam nada, nenhuma palavra. Estavam simplesmente ali. Naquele litoral (literal) entre a margem e o rio, a civilização e a barbárie, a vida e a morte.

Sapatos à beira do Danúbio para não esquecermos de que aquilo que foi possível um dia pode voltar a sê-lo.

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