segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Plenamente...

Não é evidente. Se a vida está repleta de mestres, porque haveria de ser a morte sem mestre? São os mestres, as palavras-mestras (como as chaves-mestras) que abrem as portas da vida e da morte para um sujeito. Até mesmo antes de nascer, já os significantes-mestres lhe preparam a cama. São eles que o levam ao colo, que o ensinam a andar. O chão que pisa. O caminho que trilha. O pronto-a-vestir quando se trata de enfeitar o corpo. É a beleza (ou a fealdade) que o veste, mas é um significante-mestre que o alça, que o eleva até à altura de onde pode admirar-se, tornar-se admirável.  Mas também a jura. Jura-se em nome de. Ou a promessa. Promete-se em nome deste ou daquele significante-mestre. E o que dizer da luta quando esta nos chama para a frente de batalha? São eles que nos movem. Que seguram a arma por cima do tremor dos ombros. E quando vem a paz? Eis que é preciso reconstruir em nome de quê? Dos significantes-mestres. Deste ou de um outro qualquer. Há sempre um mestre que nos diz o que fazer. E o que não fazer também. Um significante-mestre que, na boca de um mestre qualquer, nos orienta - ou então nos dá o norte, consoante o ponto cardeal em questão. Um significante que nos torna pacientes - não porque somos pacientes, podemos até ser impacientes, mas porque, sejamos pacientes ou impacientes, sempre padecemos. Tanto na vida como na morte. A vida com mestre. A morte com mestre.

Ainda assim, não obstante, o último livro do poeta Herberto Helder (um poeta que eu tanto admiro), tem como título: «A morte sem mestre». Mais do que tentar compreender, busquei um eco. Um eco desta frase. E achei: num outro poeta. Um poeta que escreveu contra a impossibilidade de escrever depois de Auschwitz, segundo a palavra-mestra de um tal Adorno. Paul Celan, o poeta em causa, escreveu num poema: «A morte é um mestre que veio da Alemanha». Em jeito de paródia - uma paródia crua, cruel - o último poema de Morte sem Mestre conta-nos a história, digamos assim, para não complicar, de uma bilha de gás para a qual não há dinheiro. O poeta escreve: «se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por / aqui acabasse nazi / já seria mais fácil». Quer dizer: a morte sem mestre não é mais fácil. A bem dizer, os significantes-mestres facilitam a vida e a morte. Arranjam gás. Pagam a conta. Abrem e fecham a torneira. Anunciam: temos a solução para o problema! No limite: a solução final. A que arrasa tudo. Uma língua «plana», a saber, os significantes-mestres ou as plavras-de-ordem, sem lugar para ambiguidades ou equívocos, que tornam tudo plano. A vida toda plana. A morte plana. Rasa.

Mas o que pode um poeta? O que podem os poetas contra a morte? A morte que é, no dizer de Hegel, o mestre absoluto. O mestre que domina até, mais cedo ou mais tarde, os próprios mestres da morte. O que podem os poetas, o que pode a poesia contra isto? O que pode um livro? O que pode A Morte sem Mestre? Talvez não muito. Talvez pouco. Mas um pouco que basta enquanto estamos vivos. Para que «a língua plana», isto é, os significantes-mestres que arrasam tudo, não façam da própria língua, da língua que falamos, mas que também nos fala, uma língua morta. Para que a «língua plena» não se transforme em «língua plana». Para, enfim, que as «servidões» que temos para com os significantes-mestres não se transformem, ainda em vida, em puras declarações de morte.

Ou, como bem diz o poeta: «e encerrar-me todo num poema / não em língua plana mas em língua plena».

Plenamente. De acordo.

1 comentário:

  1. Filipe fiquei parada, fiquei talvez encantada com o que li. No momento em que penso qual será o significante mestre que me mantém? Penso nisso, sofro isso, repito aqui tuas palavras "Há sempre um mestre que nos diz o que fazer. E o que não fazer também. Um significante-mestre que, na boca de um mestre qualquer, nos orienta - ou então nos dá o norte, consoante o ponto cardeal em questão. Um significante que nos torna pacientes - não porque somos pacientes, podemos até ser impacientes, mas porque, sejamos pacientes ou impacientes, sempre padecemos. Tanto na vida como na morte. A vida com mestre. A morte com mestre." Obrigada. Selma

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