sábado, 9 de agosto de 2014

Ao pé da letra...

A senhora pediu-me gentilmente que assinasse o meu nome tal como figura no documento de identificação. Sem hesitar, assinei. Qual não foi o meu espanto quando, em vez de um sorriso, vejo, incrédulo, que a sua cara se transforma em puro desalento: não está nada igual, tem de assinar outra vez!

Olhei para a minha assinatura, parecia-me igual, mas, ainda assim, voltei a assinar. Não estava com tempo para interrogações, não queria fazer metafísica em torno de um nome, de um simples arranjo de letras. Por isso, quase mecanicamente, peguei na caneta e assinei outra vez o documento em causa.

De novo, a senhora barafustou: Pior ainda! Olhe para esta letra! Completamente diferente! Eu nem queria acreditar... E disse: Está a brincar comigo, não? Em vez de sorrir, ela insistiu: Assim isto não passa! Vai ter de assinar outra vez! Exatamente como está no documento de identificação!

E foi nessa altura que eu me insurgi: Mas eu não sou uma máquina! Não consigo reproduzir uma letra tal e qual. Pode haver uma ligeira tremura, o meu dedo ser atravessado por um pensamento longínquo, ou uma borboleta batendo as asas provocar uma brisa inesperada em mim, quero dizer, na mão que escreve. Uma máquina escreve tal e qual, a não ser que esteja avariada, que tenha um problema de manutenção ou de fabrico, mas eu não. Eu simplesmente sou um pouco louco, como todo o mundo, mas não acerto com a letra certa quando escrevo de novo.

Falei-lhe da arte da escrita, da bela caligrafia dos chineses (que língua difícil!), do último livro de Herberto Helder, um poeta que tem por hábito encadernar os seus livros com papel de embrulho castanho, escrevendo por fora com caneta de feltro vermelha o título e o nome do autor,  mas que nunca, nunca escreve de forma exatamente igual...

Falei-lhe da diferença entre um corpo humano, habitado por letras que o extraviam, que não lhe dão paz (ou então, que lhe dão paz), mas nunca se (re)produzem exatamente da mesma forma.

E então, já irritada, ela disse: Não entendo nada do que diz, mas sei uma coisa: tem de assinar outra vez!

E eu, sentindo que não poderia fazer mais nada por aquele animal falante (parlêtre? par-lettre?...), peguei outra vez na caneta e, tal como um cão mecânico na era da técnica, assinei de novo o meu nome.

Com um grande sorriso no rosto, ela disse: Está a ver que consegue!?

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