segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Literal mente falando...

Em pequeno ele já brincava com letras. Separava, juntava, compunha, decompunha. Por exemplo: o nome. Um nome são letras que se agarram à pele. Letras que não querem dizer nada, que não têm sentido algum. Mas, assim juntas, até parece que dizem algo, que querem dizer isto ou aquilo. E ele agarrou-se àquilo. Às letras do nome que lhe deram, não do nome que tinha, como diria Saramago. Mas sobretudo para as desconjuntar. Para voltar a descobrir o prazer infantil de ver como as letras, quando soltas, podem gerar outros nomes, ser o princípio de uma outra língua. Uma espécie de língua estrangeira, como diria Proust.

Mais tarde, quando foi a hora de escolher - se é que a hora de escolher não é sempre mais cedo - ele escolheu: letras. Alguém cheio de dúvidas, como bom obsessivo que era, mas que nessa hora não teve dúvidas. Talvez porque algo nele já tinha escolhido, já escolhera por ele, já o escolhera. Por isso cursou: letras. Cursar letras é aprender a dis-cursar. A fazer da letra um dis-curso. E quem dis-cursa perde-se. Não se encontra mais. Não acha como fazer do nome que lhe deram o nome que tem. Um nome que se tenha. Que o re-tenha.

Por isso, algo perdido e irrequieto, ele inicia uma análise. Aparentemente, uma análise é coisa de fala, não de letra. Dá-se a palavra, não uma caneta. Ou um teclado, para estarmos mais em dia. O analista não fala a maior parte do tempo, mas nem por isso é uma folha branca. Mesmo quando as histórias vêm por encanto fácil como a Xerazade, nem por isso aquilo que se visa é a escrita das mil e uma noites, dos mil e um dias, se for o caso, que dura uma análise. E, no entanto, desde o princípio, como homem de letras que era, ele: escrevia.

Escrevia como quem prepara uma lição. Como quem alinhava as linhas de um dis-curso. Como quem não sabe ou não pode (talvez não queira) fazer outra coisa. Escrevia: tudo. Tudo é pouco.  O que ia dizer na sessão, o que não queria dizer. Tudo o que lhe ocorria: durante, depois. Gostava sobretudo dos intervalos: o tempo que mediava uma sessão e outra. As ideias caíam facilmente como fruta madura. E ele: escrevia. Anotava. Registava tudo. Ou quase.

Mas sobretudo: ele escrevia os sonhos. Não todos. Neste caso, ele era um pouco mais seletivo. Escrevia sobretudo os sonhos que o acordavam, que o perturbavam, que o faziam estremecer de emoção, desejo ou angústia. Ele achava que era isso que valia a pena. Que era aí, talvez, que poderia surpreender o nome que tinha para aquém - ou além - do nome que lhe deram. E por isso: escrevia. Para os fixar. Como coisas voláteis que são. Ou para os lembrar: como memórias curtas. Ou para simplesmente ler mais tarde. Antes da análise, por exemplo: como memória fresca.

E quando lia, mais tarde, que coisa! A emoção, o desejo ou a angústia que transportavam aquelas letras tinha pura e simplesmente desaparecido. Como se a festa tivesse acabado e só restasse a bagunça, quando já todos se foram embora e é preciso arrumar o que ficou: a tralha. E eis que todas aquelas letras que antes dançavam cheias de vida, emoção, desejo ou angústia, parecem agora simples naturezas mortas. Sem brilho. Ou um calor que as aqueça. Frias. Já não querem dizer nada. Já são outra vez apenas: letras. Um vazio (de sentido) que cavam: entre a míngua do saber (que as animava) e um corpo que lhe servia de chão, de chama.

E ele pensou: então é assim! Uma letra é apenas uma letra. Ao contrário de um corpo: um corpo é sempre alguma coisa mais. Algo que não cabe nunca em si completamente. Grande que se farta. Demasiado pequeno. Desarrumado. Fora do sítio. Sempre fora do sítio. Um pouco fora.

E ele voltou a pensar: então é isso! Eu brincava com letras para arrumar o corpo. Para ajustar o corpo ao tamanho certo. Para com letras remendar os estragos que elas próprias, as letras,  fazem no corpo. Sim, porque antes de qualquer tatuagem já todos os nomes do mundo, os nomes que te deram, ficaram gravados no corpo. E é preciso limpá-los, escová-los, enxugá-los. Ou então: voltar a soltar as letras que ficaram amarradas. En-cravadas. Tatuadas no corpo. E brincar com elas. Enxutas de sentido. Pois uma letra não quer dizer nada. Mesmo quando, juntas num feixe de letras, elas se parecem com um drama, uma tragicomédia. Ou até: uma questão de vida ou de morte.

E ele concluiu: uma letra é apenas uma letra. Mas a vida - sempre impossível de escrever - é o que fica entre uma letra e outra. À Margem. No litoral. Litoral-mente.

Em pequeno, ele já brincava com letras. E era assim mesmo. O seu nome próprio.

1 comentário:

  1. Onde o essencial, se, no curso da escrita, é sempre menos o que leva a corrente do que aquilo que vai ficando pelas margens? Há um pulsar de sentidos que, inexoravelmente, se perdem entre o sonho e a sua transcrição...

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