sábado, 13 de setembro de 2014

Em nome de Deus...

Uma pergunta: o que temos feito em nome de Deus?

Num bela peça de teatro, cujo título é precisamente In Nomine Dei, o escritor José Saramago responde à pergunta de forma magistral e numa opulência de linguagem, quase barroca, a ponto de nos deixar sem fôlego. Lembro-me bem: viajava de comboio quando li a primeira vez esse livro. E foi tal o murro que eu levei, que não lembro de nada, de nenhum pormenor da viagem, como se a distância entre Lisboa e Porto fosse apenas um detalhe do livro, uma simples nota de rodapé.

Em nome de Deus, o que fazemos? Matamo-nos. Sem dó nem piedade. Veja-se o caso, agora, dos jihadistas, algures no Iraque, na Síria. Deus é grande e tem as costas largas: cabe lá tudo! Cabem lá todos: cristãos, protestantes, muçulmanos, enfim.

Mas o que espanta mais (pois o resto é apenas variação do mesmo tema), é o fascínio que estes movimentos começam a exercer em jovens ocidentais. Eis o que merece reflexão. Como se a era do homem sem qualidades (Musil), uma era sem «alma», exigisse, como contrapeso, um suplemento de alma. Estes jovens «almam» a causa como a si mesmos, para usar um neologismo lacaniano inspirado em Aristóteles. Ou melhor: até mais do que a si mesmos, pois estão dispostos a morrer por ela. Algo que o nosso capitalismno tardio, um capitalismo descafeínado, como diria Zizek, isto é, despojado de toda e qualquer substância perigosa, já não é capaz de lhes proporcionar.

Mas será que com o mesmo entusiasmo que os empurra para a morte, buscando o testemunho de um deus obscuro que dê sentido ao ato absurdo e insensato (realmente absurdo e insensato) que cometem, não podereriam eles - não poderíamos nós - reaprender a viver com a mesma intensidade? Poderá o desejo, como causa, obstar ao gozo mortífero que impele cada um destes jovens desencantados a ceder, não uma libra de carne, mas o corpo todo, a vida toda em nome da Causa, in nome dei?

Nunca esta frase de Lacan foi tão legível como agora: «Considero que nenhum sentido da história, fundado sobre premissas hegeliano-marxistas, é capaz de dar conta desta ressurgência, por meio da qual se revela que a oferenda a deuses obscuros de um objeto de sacrifício é algo a que poucos sujeitos podem não sucumbir, numa monstruosa captura» (Seminário XI, lição de 24 junho 1964).

Estára cada um de nós em condições de dizer: eu não sucumbo?

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