sexta-feira, 27 de junho de 2014

Conformismo ou perversão?

Algumas discussões que têm decorrido, em particular no facebook, causaram em mim um desejo de escrever. Acontece muitas vezes. Um significante chama outro, faz enxame, convoca a letra.

Começo por um exemplo: Conchita Wurst. Lembram-se dela? Dele? Ela ou ele? De facto, aquilo que o travesti austríaco Tom Neuwirth, vencedor do último festival da Eurovisão, pretende, para lá de um certo reconhecimento ou identificação de um modo de gozo pelo Outro (o que premeia, por exemplo), é sobretudo um desnorteamento. A perversão visa desnortear o Outro, fazê-lo entrar em crise, angustiá-lo. Terá de ser o Outro a encontrar gavetas para arrumar esta mulher de barba...E vamos lá chegar. É uma questão de tempo...Quando sacudidos, os automatismos que governam o campo do Outro (da norma, da rotina...), acabam por reajustar-se. O novo faz entrar em crise, desarranja, mas torna possível arranjos inéditos.

Esta dialética entre conformismo e perversão está bem patente no último capítulo do Seminário VI, de Jacques Lacan, O Desejo e a sua Interpretação.  «Podemos afirmar - diz Lacan - que aquilo que se produz como perversão reflete (...) o protesto contra o que o sujeito sofre ao nível da identificação (...). Por um lado, o conformismo (...) e, por outro, a perversão, na medida em que ela representa (...) o protesto que se eleva na dimensão do desejo.» (Éditions de la Martinière, 2013, pp. 569-570).

Há um certo elogio da perversão neste Seminário de Lacan. Na medida em que o desejo não é uma função biológica nem é coordenado a um objeto natural, mas antes fantasmático, de certa forma ele é sempre perverso. Lacan dá à perversão o valor de uma rebelião contra as identificações que asseguram a rotina social, como diz Jacques-Alain Miller, na introdução a este Seminário. Portanto, neste caso, o fiel da balança tende para o lado da perversão. Mas o conformismo não baixa facilmente as armas. Veja-se, por exemplo, o modo como setores da extrema-direita austríaca reagiram ao fenómeno Conchita Wurst: chocados com o facto de que uma tal imagem tenha podido representar o país. Ou certos políticos russos que não perderam tempo para denuciar a decadência europeia. Assim, estes «momentos de crise» (Gil Caroz), são também oportunidades de mudança, de surgimento do novo, de reajuste das categorias simbólicas, dos mapas imaginários...para enquadrar um real sempre inédito e perturbador.

Perguntei-me se este esquema, naturalmente simplista, não poderia em certa medida servir para pensar o que tem sido a história da psicanálise, nomeadamente em certos momentos e lugares. Lacan, por exemplo: não foi ele um inconformado, um inconformista, subvertendo permamentemente a rotina da instituição, do hábito como instituição, da instituição como hábito, em nome da ética...do desejo? Na verdade, o que é uma instituição quando lhe falta a ética do desejo? Um sepulcro caiado. O que seria uma análise sem ética do desejo: a administração de uma simples técnica, de uma receita. Coisa para médico fazer, para farmacêutico despachar. O problema é que não basta ser lacaniano, servir-se dos significantes ou do estilo de Lacan, para estar à altura desta ética. A maior parte do tempo, sejam lacanianas ou não, as instituições tendem a enquistar, a burocratizar-se, a sobrepôr à etica a política. Uma técnica, uma política, uma burocracia. Troika infernal!

Freud, neste aspeto, é um caso exemplar. Ele que subverteu o saber «médico» da época, que se pôs a escutar o sintoma, em particular das histéricas, que na verdade não sabia o que fazia, pois não havia ainda um quadro para enquadrar aquele real...De facto, mais do que a história de um sucesso, o trajeto de Freud pode ser visto como a história de uma série de fracassos, de erros (veja-se o caso Dora, por exemplo, cuja obstinação «edipianizante» de Freud passou completamente ao lado do que estava em causa) A grandeza de Freud, porém, consistiu em fazer avançar a psicanálise graças à assunção desses erros. O erro ensina, eis a lição de Freud. O caminho faz-se caminhando. Ele estava a inventar algo novo, por isso, mesmo se não respeitou nenhum dos critérios que hoje parecem condições sine qua non para o exercício da psicanálise (em particular, ter feito a sua própria análise), ele circunscreveu e fez avançar como poucos a causa que nos mobiliza ainda hoje. E eu pergunto: conformismo ou perversão? Freud per-verso (também no sentido daquilo que Lacan escrevia como «père-version», isto é, uma certa versão do pai) ou conformista, isto é, procurando defender a instituição analítica dos seus desvios?

É interessante pensar que alguns dos melhores analistas ou não fizeram análise (caso de Freud) ou, pelo menos, a conclusão da mesma foi deveras problemática se vista à luz de critérios mais conformistas (caso de Lacan, por exemplo). E eu pergunto de novo: o que tem sido mais produtivo na história da psicanálise: conformismo ou perversão?

Uma prática conformista que não seja de vez em quando sacudida, agitada por um tremor de terra ético, tende a ficar anémica, a perder o vigor, a atrofiar. Aquilo que era o vigor inconformado de um desejo transforma-se rapidamente na administração de uma técnica monótona, repetitiva.

Mesmo se o «discurso do analista», como dizia Lacan, é o avesso do «discurso do amo» (Seminário XVII), não devemos esquecer-nos de que o «avesso», aqui, não significa simplesmente o oposto (mais do que isso, o contraditório), mas também o que, por meio de um certo movimento topológico, pode converter-se facilmente no seu contrário, sem haver sequer um tremor, um corte, uma solução de continuidade. E o problemas é que ser «lacaniano» não livra ninguém da tentação da mestria, do amo...Ou será que livra? Entendo que deveria livrar, mas será que os factos, a história...nos dão isso como garantia?

A tentação do amo, sobretudo ao nível das instituições, é um perigo «religioso» que nunca é de mais ter em conta. Não foi também para isso que Lacan nos alertou ao escrever o «triunfo da religião»? E se o triunfo da religião não dissesse apenas rspeito, ou sobretudo respeito, à velha religião católica, apostólica e romana, para não falar de outras, mas à tentação inerente, sempre inerente - e como tal perigosa - às instituições analíticas?

Mas será então que, na esteira do Seminário VI, deveríamos também fazer aqui um elogio da perversão contra o conformismo «religioso» da psicanálise? Talvez sim, talvez não. Eu preferia antes pensar as coisas à maneira de uma curva de Gauss: entre os dois extremos, conformismo e perversão, há tantas possibilidades, tantas coisas que resta por inventar....desde que não se perca o fulgor da causa analítica, bem como da sua ética singular. Pois, na verdade, que importa seguir a técnica se a ética nos falha, ser conforme ao que deve ser se o que deve ser é apenas uma fórmula vazia?

E sobretudo: que ninguém se atreva a ocupar o lugar do Outro do Outro. Daí só pode vir: ou a impostura ou o pior.

1 comentário: