segunda-feira, 11 de maio de 2015

A função do belo

O cinema é imagem em movimento. Graças à projeção rápida e sucessiva de tais imagens, o olho humano tem a ilusão de que não existe corte, fissura entre elas. Entre um fotograma e outro, uma imagem e outra não há descontinuidade. É compreensível, então, que o cinema se tenha convertido, numa certa época e em certos lugares, na arte por excelência de um mundo que não para de acelerar porque tem pressa. A função da pressa marca hoje o nosso tempo como os ponteiros do relógio o marcavam outrora.

Só que atualmente, graças em particular à revolução digital, à Internet, não só ele foi suplantado por outras artes mais rápidas ainda, mais velozes, como se tornou em alguns casos raros - ou pelo menos raramente difundidos - em fator de resistência: um contrapeso à aceleração do mundo. Manoel de Oliveira, que faleceu recentemente, foi um dos arautos de uma tal resistência, como se, nas suas mãos, o cinema voltasse a resgatar a matéria de que é feito: o tempo.

É uma tal resistência ao movimento acelerado do mundo, da vida, que nos mostra - e aqui o verbo mostrar é bem apropriado, uma vez que procura acercar-se de algo quase impossível de dizer com bastante economia de palavras - o impressionante e belíssimo filme de Aleksandr Sokurov, Mãe e filho. Mais do que imagem em movimento, neste caso assistimos a certos movimentos lentos (um filho levando a mãe, já moribunda, ao colo; um comboio que passa vagarosamente ao longe; um barco quase adormecido no mar) que atravessam a imagem parada. Como se fosse necessário deter o movimento acelerado das imagens para voltar a reparar que certos movimentos lentos também existem, também se dão. Aqui, a imagem parada, e já não em movimento, ganha o estatuto de quadro: uma janela para um real.

Na verdade, todo este filme lento, belíssimo, é uma galeria de arte: sucessão impressionante de algo que não sabemos bem como nomear mas que é sem dúvida alguma da ordem da pintura, da poesia. É dessa forma, graças à função do belo, como diria Lacan, que este filme consegue elevar o objeto artístico à dignidade da Coisa: uma coisa impossível de dizer, mas que o cinema se permite mostrar.

N.B. Agradeço ao poeta Alberto Pucheu uma tão boa indicação e partilha.

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